Quando foi convidado para interpretar James Mathew Barrie (1860-1937) no filme
Em busca da Terra do Nunca, de 2004, Johnny Depp praticamente obrigou a equipe do diretor Marc Foster a realizar um levantamento completo na vida daquele homem. O objetivo do ator era se certificar de que não estaria emprestando o rosto a um pedófilo, como sinalizavam boatos em relação ao dramaturgo escocês por conta da relação dele com as crianças que lhe inspiraram em seu trabalho mais famoso, a peça teatral
Peter Pan, que ganharia fama mundial e chegou a virar desenho da Disney. Agora, Depp atua em um filme da Disney que adapta uma obra também do século XIX cercada de ainda mais suspeitas quanto ao interesse de seu autor original em relação à fonte de inspiração:
Alice no País das Maravilhas.
O clássico
Aventuras de Alice no País das Maravilhas e sua continuação,
Através do espelho, foram obras escritas pelo professor de matemática Charles Dogson (1832-1898), mais conhecido pelo pseudônimo literário Lewis Carrol. A musa de ambos os livros foi uma menina que tinha quatro anos incompletos quando ele a conheceu, em 1856, cujo nome não por acaso é o mesmo da protagonista dos romances e do filme que acaba de estrear no Brasil fazendo uma fusão daqueles dois trabalhos. Johnny Depp está no longa e em várias imagens relacionadas a ele dando forma ao Chapeleiro Maluco. Sendo que o diretor desta vez é Tim Burton, não é supresa alguma que o ator tenha feito parte do projeto - mesmo que ainda guarde reservas pessoais quanto a trabalhar com obras ligadas a suspeitas de pedofilia em sua origem - pois a parceria dos dois é muito bem estabelecida há duas décadas, desde
Edward Mãos de Tesoura, de 1990.
Curioso é que a Alice criança originalmente escrita por Carrol tenha sumido. Ao contrário da primeira vez que os estúdios Disney adaptaram aquele material, em uma animação de 1951, a opção aqui foi a de dobrar a idade da personagem-título. Ela aparece como uma mulher às vésperas de completar 20 anos, vivida pela atriz australiana Mia Wasikowska, e de ser pedida em casamento por um nobre longe de se encaixar no perfil de príncipe encantado. Seja para se livrar de qualquer insinuação mais polêmica ou por escolha puramente artística, esse envelhecimento forçado foi uma decisão arriscada e que deixou marcas na obra. Num primeiro momento, poderia ser somente estranhamento, como ocorreu quando a Globo optou por usar uma atriz mirim para viver a personagem Emília - na ocasião em que a emissora brasileira resolveu voltar a adaptar o
Sítio do Picapau Amarelo - depois de uma longa tradição em que a boneca de pano era interpretada por mulheres adultas na tela da TV. Mas é bem mais complicado que isso.
Independentemente das motivações por trás de sua criação, é inegável que Lewis Carrol produziu uma obra-prima da literatura infantil. Ao mesmo tempo em que contestou os rigores da sociedade da Era Vitoriana e apresentou brincadeiras com lógica e matemática, sua obra vem divertindo gerações de crianças há quase um século e meio e fascinando adultos com a riqueza de sua imaginação e apuro técnico. O efeito se perde muito, quase por completo, quando ao invés de uma criança entediada se deslumbrando e sendo desafiada por aquele mundo de maravilhas vemos uma pessoa adulta fugindo de suas responsabilidades interagindo com aquela sucessão de personagens enigmáticos. Mesmo que essa pessoa seja bem menos adulta em termos de personalidade do que seria de se esperar de uma mulher de sua idade naqueles tempos. O
sense of wonder - sem trocadilhos com o nome do filme - acaba prejudicado com isso. Muito de Alice se perdeu no processo.
Mas ainda pior são os rumos do roteiro que troca aquela contestação um tanto anárquica da fonte primária por uma história que tenta agradar a mais parcelas do público, incluindo o masculino e adolescente, com toques épicos. Quase ao final do filme, ao ver a Alice adulta de armadura e espada na mão, enfrentando criaturas geradas por computador, tive a impressão de que alguma interferência estava acontecendo. Parecia que cenas de
O senhor dos anéis, de
Crônicas de Nárnia ou mesmo de
Aragorn haviam sido infiltradas naquele universo meio que sem contexto, à força. E dali segue um final que, bem, é muito mais Disney que Burton, procurando amarrar tudo de um jeito tão explicadinho, tão didático que sobram sorrisos amarelos, maiores que o do famoso gato, tão pouco explorado no filme, infelizmente. Parece que o diretor acabou sendo apressado pelo Coelho Branco e convencido a acelerar o ritmo para não se atrasar.
Claro que na parte visual, como é de se esperar de Tim Burton, o espetáculo está garantido. Em sua primeira criação com atores no atual padrão 3-d que se estabeleceu nas salas de projeção, o cineasta dá um show. Provavelmente, o filme perde muito de seu impacto se for visto sem os recursos tridimensionais. A cena da queda de Alice pelo toca do Coelho, por exemplo, deve entrar para uma antologia dos melhores momentos da carreira do diretor. Contudo, ao contrário do que aconteceu com
Avatar, aqui as legendas atrapalharam um tanto o processo. Se no filme de James Cameron elas ocupavam um plano à parte, sem interferir com o restante, em
Alice no País das Maravilhas as letras em alguns momentos, como na cena do chá, acabam se fundindo ora com um elemento, ora com outro, confundindo o efeito de profundidade. Para quem conseguir abstrair esses momentos - que não são tantos - há muito o que se deslumbrar com essa Era Vitoriana fantástica criada por um dos maiores estetas em atividade no cinema.