15.12.09

Cavalheiros do Inferno

Entre os leitores de ficção fantástica o caso mais rumoroso de suspeita de plágio envolve HQs e literatura: as semelhanças entre os jovens aprendizes de bruxos Tim Hunter e Harry Potter. O primeiro, órfão da Inglaterra, com visual magrelo, franjas, óculos e com uma coruja sempre no ombro, foi criado pelo inglês Neil Gaiman como protagonista da minissérie em quadrinhos Livros da Magia, de 1991, logo dando origem a uma série de gibis; o segundo, órfão da Inglaterra, com visual magrelo, franjas, óculos e com uma coruja sempre no ombro, foi criado pela escocesa J. K. Rowling como protagonista do romance Harry Potter e a Pedra Filosofal, de 1997, logo dando origem a uma série de livros e de filmes.

Um outro exemplar bem menos divulgado, mas que também desperta paixões entre os tais leitores de ficção fantástica, envolve o vetor inverso – da literatura para as HQs – porém ocorre no mesmo território britânico entre dois camaradas e conterrâneos do já citado Neil Gaiman: Kim Newman e sua trilogia de romances iniciada por Anno Dracula, de 1992; e Alan Moore e sua trilogia de minisséries em quadrinhos iniciada pelo primeiro volume de A Liga Extraordinária, de 1999. Os dois trabalhos envolvem matéria-prima idêntica: personagens criados por dezenas de outros autores, quase todos em domínio público, habitando um mesmo universo ficcional coeso sediado em uma Inglaterra vitoriana. Este texto não é para confirmar ou negar as suspeitas de plágio em si, mas para saudar a possibilidade de mais brasileiros chegarem às suas próprias conclusões, pois a Aleph acaba de editar a versão em portugês da única dessas obras citadas que ainda não havia sido lançada em nosso país.

Anno Dracula ganhou uma versão muito caprichada da editora paulista, 17 anos após ter sido publicado originalmente na Inglaterra (em outra resenha postada neste blog comentei como esse tipo de atraso infelizmente é comum em nosso mercado editorial). A tradução competente é de Susana Alexandria que, além de verter as palavras para o português, ainda compilou uma muito bem-vinda (mesmo que, como dificilmente deixaria de ser, incompleta) lista com 104 personagens históricos e fictícios retrabalhados pelo jornalista, crítico e escritor Kim Newman (foto ao lado). Como fica claro pelo título da obra, que parodia a expressão latina Anno Domini – “ano do Senhor”, a data que marca o nascimento de Jesus Cristo dividindo o Calendário em duas eras – a principal referência é a mais famosa criação do irlandês Bran Stoker (1847-1912), o romance símbolo do vampirismo, Drácula, de 1897.

E o mote do livro do século XX é justamente uma discrepância, um ponto de divergência, em relação ao da obra do século XIX. O conde da Transilvânia não só sobrevive a seus caçadores – a equipe liderada por Abraham Van Helsing –, ele também executa uma jogada de mestre ao ir à capital do Reino Unido, desposar a viúva rainha Vitória (1819-1901) e revelar a existência de seus irmãos de sangue nomeando vários deles para cargos de peso na gestão do Império Britânico em seu auge. Esta é a senha para o escritor se apropriar de uma legião de damas e cavalheiros vampiros, alguns de antes outros de depois de Drácula. Segue uma torrente inacreditável de citações e de apropriações de personagens, todos convivendo em relativa harmonia – ao menos literária – na prosa de Newman, apesar das diferenças de origens e de contextos históricos de tantas linhagens vampíricas distintas.

Os mortos-vivos usados na obra vêm de todas as partes, da literatura, do cinema, de seriados de TV. O escritor fez até mesmo uma autoapropriação, pois uma das protagonistas de Anno Dracula, a vampira Geneviève Dieudonné, surgiu antes no romance Drachenfels escrito por Newman com o pseudônimo Jack Yeovil (este sobrenome também é reutilizado para batizar uma personagem secundária). É Geneviève, uma anciã mais velha que o próprio ex-conde - atual príncipe consorte - Drácula em corpo de garota, que passa a investigar ao lado do humano – ou “quente”, como são chamados os não-vampiros no livro – Charles Beauregard o mistério que atravessa o livro: a série de assassinatos que remete aos realizados pelo misterioso Jack, o estripador. Curiosamente, este tema também foi explorado por Alan Moore em From Hell, outra minissérie em quadrinhos adaptada para o cinema. E, tanto no livro quanto na HQ, o mistério sobre quem mata é revelado logo de início para o leitor, cabendo à estrutura narrativa trabalhar com os efeitos dos crimes nos outros personagens e na sociedade em geral. Coisa que tanto o livro quanto os quadrinhos cumprem com perfeição, diga-se. A diferença é que em Anno Dracula o maníaco mata prostitutas vampiras com um objeto que vai lhe valer o apelido dado pelos jornais: Faca de Prata.

Vale ressaltar que ao longo das 376 páginas não são apenas vampiros alheios as criaturas tomadas de empréstimo. Na verdade, as semelhanças com a Liga Extraordinária surgem justamente pela coincidência entre os vários personagens utilizados em ambas as obras e até mesmo, vejam só, por uma ausência em particular. É notável que tanto Newman quanto Moore tenham optado por deixar de lado a criação mais famosa de Arthur Conan Doyle (1859-1930). Se o quadrinista situou sua série no período em que Sherlock Holmes foi dado como morto, o romancista optou por isolar o detetive em um campo de concentração, em Sussex Down, chamado Devil’s Dyke – e não na Torre de Londres, como informa o pósfácio. Aliás, descontando o lapso de informação, este texto, de autoria do escritor, designer e professor Octavio Aragão é outro ótimo acréscimo à edição nacional. Já o entrevistei para o Omelete, ocasião em que falamos rapidamente sobre Anno Dracula e como aquela obra o influenciou na criação de seu próprio livro, A mão que cria, no qual o autor brasileiro explora outra vertente de mortos-vivos: os zumbis. A Aleph não poderia ter escolhido pessoa mais adequada para apresentar o trabalho de Kim Newman e o gênero conhecido como ficção alternativa aos novos leitores.

Pela área de interesse deste blog, a questão que fica é se este lançamento faz parte do steampunk. Minha opinião é a de que não, faltam características retrofuturistas ao livro para que ele possa se enquadrar neste subgênero. Mas não é o que pensa, por exemplo, a jornalista Fernanda Correia, que entrevistou o inglês para a Livraria da Folha (matéria de onde tirei a foto que ilustra este post) e o definiu assim: “Newman segue em seu texto a estética steampunk, ramo da ficção científica que foca especialmente a era Vitoriana e que retrata a tecnologia mecânica a vapor altamente evoluída, misturando diversas referências”. De todo modo, tanto pela ambientação da época quanto pela qualidade da pesquisa histórica e literária do autor, não tenho dúvida de que Anno Dracula deve agradar bastante os apreciadores da cultura steamer.

Para encerrar – que este texto está me saindo maior que o planejado – vale lembrar: o editor da obra no Brasil, Adriano Fromer, reconheceu que a publicação deste livro se deu principalmente pela indicação dos fãs em um fórum do Orkut. Se essa não é uma demonstração cabal do poder das sugestões dos leitores o que seria? Então, fica a dica para os entusiastas da ficção fantástica em geral, da FC e do steampunk em particular: caso haja a mobilização de todos, mais obras podem ser lançadas em nosso país, diminuindo o déficit de publicações em português em nossas livrarias. Façam suas listas e entrem em contato com a Aleph e outras editoras brasileiras. A caldeira não está fervendo como nunca por aqui? Perfeito para mandar sinais de fumaça aos editores.

PS - Uma correção ao texto que me foi enviada por um colega da coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário, Flávio Medeiros: "Tim Hunter foi criado pela escritora inglesa Diana Wynne Jones para a série de livros Os Contos de Crestormanci. Gaiman pediu licença à autora para se apropriar de Hunter para os Livros da Magia, cortesia que Rowling infelizmente não só omitiu, como nega até hoje". Valeu mesmo, Flávio. Desconhecia essa informação que leva a criação de Tim Hunter para o ano de 1982.

9 comentários:

Anônimo disse...

ótima resenha! Newman e Chabon estão se estapeando aqui pra ver quem vai ser minha próxima leitura! :-)

E eu fui um dos que pediu a publicação do livro. Dá vontade de pedir mais mesmo.

Romeu Martins disse...

Acho que vale pedir as continuações da série, os livros do Farmer de FA, The different engine, do Gibson e Sterling... A lista é longa, mas as editoras nos ouvem, às vezes.

No livro do Chabon aparece o personagem que falta no do Newman: Sherlock está lá, com muitos anos a mais nas costas.

Giseli disse...

Tô quase terminando de ler o livro, mas não pude deixar de ler seu post =) Acho que termino o livro depois da prova rs. Ótima resenha, com muitas informações-aperitivos em paralelo! Tidbits, são chamados? As info-petiscos? rs

Romeu Martins disse...

Petiscos podem entrar, spoilers, não ;-)

Ivo disse...

Já está na lista prioritária para ser lido.

Outro do Kim Newman que eu adorei foi "Back in the USSA", que ele escreveu com Eugene Byrne.

Karl Marx emigrou para os EUA, passou a se chamar Charles Marx e fez a sua revolução com os trabalhadores americanos, muito divertido ver ocmo alguns personagens que estudamos e acompanhamos seriam nesta realidade.

Romeu Martins disse...

Nossa, parece bacana mesmo, Ivo!

Anônimo disse...

Muito boa a resenha, Romeu! Já comprei o livro, e ele acaba de subir algumas posições na famigerada "pilha".
Só uma correção: Tim Hunter foi criado pela escritora inglesa Diana Winne Jones para a série de livros "Os Contos de Crestormanci". Gaiman pediu licença à autora para se apropriar de Hunter para os "Livros da Magia", cortesia que Rowling infelizmente não só omitiu, como nega até hoje.

Flávio Medeiros

Romeu Martins disse...

Caramba, Flávio, dessa eu não sabia. Vou acrescentar um PS ao texto.

Valeu mesmo pela correção!

Leonardo Peixoto disse...

São tantos os livros que deviam ser traduzidos pro português ...