Mas o assunto aqui é steampunk, vamos deixar o morcego sessentista de lado e nos focar no que interessa. Até porque, neste álbum inaugural, mais do que em qualquer outro lançado por aquele selo, tudo conspirou tão favoravelmente para seu sucesso que não devem ter sido poucos os leitores a preferir aquela ambientação alternativa à oficial. A trama em si é muito simples, bem mais do que se poderia esperar de uma história de investigação. A bem da verdade, Brian Augustyn não nos oferece exatamente um desafio se formos encarar sua história como um exemplar de whodunit – aquele estilo consagrado por Agatha Christie (1890-1976) –, mas ele conduz bem a narrativa para garantir surpresas até o final, se não quanto ao “quem fez”, pelo menos ao “por que fez”. E olhe que o sujeito por trás do tal quem é ninguém menos que o serial killer mais célebre de todos os tempos, o mito que praticamente define o termo no imaginário popular: Jack, o Estripador. Passada sua temporada de assassinatos impunes na Inglaterra, o maníaco ataca em outro local, ao cruzar o Atlântico em direção à América. A partir de julho de 1889, ele começa a dividir as manchetes dos jornais Gotham City Gazette e The Gotham Guardiam com uma estranha aparição que se veste com máscara, capa e um enorme morcego desenhado no peito.
Nós, os leitores da HQ, sabemos que são duas criaturas noturnas distintas, o assassino que apunhala prostitutas nas ruas mal-iluminadas e o vigilante que patrulha a cidade do topo dos prédios. Porém, para os leitores dos jornais, para os repórteres, para a polícia, para a população assustada não é nada fácil fazer tal distinção. Com isso, não demora nem três meses para as autoridades prenderem a pessoa errada; o homem que, de dentro de uma cela no Asilo Arkham, deve tentar se sair bem onde duas forças policiais falharam anteriormente. A corrida é contra o tempo, pois a sentença foi dada e o enforcamento de Bruce Wayne já está marcado.
Contudo, se o roteiro é mesmo tão simples – apesar de guardar detalhes saborosos para quem conhece a mitologia do personagem criado por Bob Kane, como a discreta versão para um suposto Coringa e o ainda mais discreto Harvey Dent – o grande trunfo desta graphic novel é mesmo sua parte visual. Gotham by Gaslight foi o cartão de visitas definitivo para um grande artista dos quadrinhos, um esteta da narrativa gráfica como poucos, Mike Mignola. Então aos 26 anos, este californiano havia surgido para os quadrinhos no início daquela década na concorrente da DC, a Marvel, por onde publicou trabalhos nas revistas do Demolidor e da Tropa Alfa. Nada que merecesse chamar muita atenção. Foi mesmo na casa das duas letras que saíram suas primeiras obras com a marca autoral. Ano antes de sua empreitada vitoriana, o rapaz desenhou uma minissérie em quatro capítulos chamada Odisséia Cósmica. Batman fazia uma ponta, mas a saga era estrelada pelos personagens que Jack Kirby (1917-1994) criara para aquela editora décadas antes.
Talvez influenciado por essa lenda dos quadrinhos, Mignola começou a adotar ali as características que seriam aprimoradas no álbum de estreia do selo Elseworlds. O desenhista comum de meados dos anos 80, deu origem, no final daquela década, a um artista com traço marcante, sólido, conciso, minimalista. Tão minimalista que imaginar um painel seu subtraído de uma única linha é imaginar um desenho incompleto. Não sobra nada, não há gordura para se queimar. Se o estilo começou a aparecer em Odisséia Cósmica, foi em Gotham by Gaslight que ele ganhou definitvamente crítica e púbico, passando a se desenvolver ainda mais na criação do personagem a que tem se dedicado nos últimos anos, Hellboy (que já foi levado ao cinema por duas vezes, sendo a última delas em um filme com tratamento bastante inspirado na estética steampunk). Hoje, a arte de Mignola dispensa assinatura, um leitor habitual do gênero reconhece sua composição sóbria, a estilizacão dos personagens, a arquitetura urbana bem delineada, o traço firme e sem meios tons que cria uma atmosfera entre o suspense e o horror seja lá onde ela aparecer. Tanto que foi usada até para apresentar ao mercado internacional o fumetto Dylan Dog, ilustrando capas de álbuns que foram publicadas no Brasil, pela Conrad. Seria fácil dizer que seu estilo é único e inimitável, mas a verdade é que desde a primeira vez que o percebi, passada aquela fase nada chamativa de Tropa Alfa, eu o comparo com um quadrinista nacional, mas isso fica para uma próxima resenha.
Todas essas informações visuais aparecem naquele álbum desde sua capa passando por cada um dos quadros de suas pouco mais de 50 páginas. Bruce Wayne, Batman e sua cidade gótica estão tão à vontade naquele contexto do século XIX que é de se duvidar mesmo se o melhor para eles não seria manter a ambientação de época, dispensando o período contemporâneo. Raras vezes as versões que passaram a ser apresentadas então regularmente dele e de outros heróis no selo Elseworlds mostraram uma combinação tão adequada ao espírito do tempo retratado. O Nosferatu, como ele chega a ser chamado em uma festa de alta sociedade em certo momento, parece mesmo ter surgido para viver no oitocentos.
A arte climática de Mike Mignola ganhou um reforço formidável com a finalização de P. Craig Russel e, principalmente, com a paleta de cores de David Hornung. Basta voltarmos a comparação àquela minissérie que antecedeu este álbum, a Odisséia Cósmica, com suas cores primárias e berrantes, para constatar o quanto os tons frios e soturnos caem melhor àquele estilo econômico de desenho. A história já abre com duas páginas de um cinza-azulado emulando um sonho – que Bruce Wayne, completando seus anos de treinamento, narra ainda em Viena para um dos seus mestres, Sigmund Freud (1856-1939), ainda jovem, degustando seus indefectíveis charutos. Bem mais à frente, quando surge a necessidade de se usar o recurso do flashback, as cores se aproximam do sépia, amarronzadas, amareladas como uma memória esvanecida. A rigor, uma cor quente só é utilizada com destaque para demarcar certo momento dramático: o vermelho vivo que pinta o quadrinho no qual uma pistola é disparada em um ponto crucial da história. Para evitar exageros, em tão contida HQ, o painel dispensa onomatopéias.
Um trabalho de sutilezas que faz o clássico. Mesmo o título original, dispensado no Brasil em todas as oportunidades nas quais a obra ganhou tradução local, evoca muito usando pouco. Gaslight diz mais sobre aquele álbum que apenas a forma de iluminação adotada pela nascente metrópole de Gotham City de 1889. O termo se refere a uma vertente literária pertencente às origens da cultura steampunk. Vale citar um artigo do Conselho Steampunk, de sua série “Seguindo a trilha do vapor”, no qual o confrade Karl analisou o estilo:
Falando sobre variedades do fantástico (puxando assunto através da última frase de um artigo anterior, que descarado heim Karl!), outro elemento, antes uma categoria separada, mas hoje incorporada na vertente steampunk, são os chamados Gaslight Romances (literalmente traduzindo: Romances à Luz de Gás. Sim, eu sei, é estranho…), histórias que se ambientam em uma versão romantizada, enevoada (quero dizer, bem mais enevoada), da Londres do século XIX, mas com enfoque em vários nostálgicos ícones do fim desse século e do início do século XX. Uma combinação de ficção sobrenatural, romance policial, e fantasia histórica, colocando em um mesmo cenário figuras como Jack o Estripador, Sherlock Holmes, Dr. Jekyll & Sr. Hyde, Auguste Dupin, Dracula (o do livro, não o de verdade), Hercule Poirot, Erik O Fantasma da Ópera, Miss Marple, e até mesmo Tarzan.
Com exceção de alguns trabalhos franceses, essa categorização não é mais usada, mas seus elementos passaram a fazer parte do gênero steampunk sem distinções, o que convenhamos, é mais prático do que ficar sub-categorizando cada elemento, e depois sub-categorizar a sub-categoria, e assim por diante.
Tanto concordo que acho possível classificar este álbum como sendo steampunk, mesmo não havendo nenhuma tecnologia retrofuturista nele – o toque anacrônico surge apenas no deslocamento do protagonista, criado originalmente nos anos 30 do século XX para viver uma aventura como se fosse um nativo do XIX. Contudo, é preciso lembrar, que essa história ganhou uma continuação direta, também do selo Elseworlds, dois anos depois de sua publicação. Batman: Master of the future é, ela sim, uma obra steamer de fato, ao mesmo tempo que é, infelizmente, bem inferior ao trabalho pioneiro. Novamente no roteiro, Brian Augustyn faz o alter ego de Bruce Wayne enfrentar nos céus de Gotham – agora bem mais ensolarada – um pastiche de Robur, o Nemo dos céus, criação de Jules Verne (1828-1905). Jamais vou entender o porquê de ele não ter usado o personagem original, já em domínio público àquela altura... Francês como Verne, Alexandre LeRoi é um curioso caso de extremismo ludita: ele ataca Gotham por criticar o apego das pessoas à tecnologia e usa para isso um dirigível e um robô altamente tecnológicos. Os desenhos ficaram a cargo de Eduardo Barreto, artista competente mas que não é Mike Mignola. Nem é de se estranhar muito que a Panini tenha optado por outra história que não essa para elaborar o encadernado recém-lançado. Mas nos Estados Unidos, Gotham by Gaslight e Batman: Master of the future foram compiladas em uma edição com o título Batman: Gotham by Gaslight.
Além dessa sequela, a graphic novel voltou a ser citada pela DC Comics em 2007, desta vez na cronologia oficial da editora, durante os eventos de uma de suas sagas periódicas envolvendo vários personagens. Foi em Countdown - Contagem Regressiva, no Brasil - em que aquele mundo vitoriano acabou sendo absorvido pela continuidade geral da companhia, recebendo a alcunha de Terra-19. Fica a curiosidade de se saber que a história em questão foi, novamente, uma volta de Augustyn à sua mais famosa criação, desta vez ilustrada por um brasileiro, Greg Tocchini. De modo geral, Countdown foi um justo fracasso de crítica e de público, abrindo uma crise criativa na DC, e essa HQ em particular não é digna de nota. Uma inspiração bem mais interessante surgiu de forma não-oficial e também foi pauta de matéria do Conselho Steampunk: baseado naquela versão anacrônica de Batman, o escultor conhecido como Sillof criou a Justice League by Gaslight, uma série de brinquedos articulados – as action figures – personalizados por ele . Ver suas recriações steampunk para Super-Homem, Mulher Maravilha & cia. (senti a falta do Coringa, ali) ajuda a entender onde foi parar a criatividade que tanto faltou a Brian Augustyn ao tratar daquele pequeno clássico que criou, vinte anos atrás, em parceria com Mike Mignola.
Um comentário:
A DC Comics devia apostar mais na Terra-19 , adoraria ver a Justice League by Gaslight nos quadrinhos da editora .
Sobre o texto do Karl , agora fiquei com vontade de ler sobre Jack , o Estripador lidando com um grupo de icônicas figuras da literatura com a missão de captura-lo .
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