Este post nasceu a partir da sugestão de um leitor pelo
Twitter – perdão, mas na confusão daquele telégrafo sem fio, acabei perdendo o nome dele
Upgrade: ele voltou a se identificar, foi
este o culpado – e da observação que algumas classificações de gêneros derivados do steampunk podem provocar muita confusão, muito calor e pouca luz. A princípio, a ideia era apenas a de recolher alguns dos vários tipos de anacronismos tecnológicos, marcados com o sufixo punk, e apresentar aos frequentadores deste espaço. Meu objetivo com isso é um só: ampliar as possibilidades do retrofuturismo, evitando que um tema tão rico e tão adaptável fique restrito a apenas um período histórico - mesmo sendo um tão interessante quanto a Era Vitoriana.
Neste sentido, já publiquei aqui
um conto de Eric Novello que pode ser classificado como sandalpunk, por se passar durante o Império Romano, e em breve pretendo postar uma contribuição de um conterrâneo meu que ocorre em uma II Guerra Mundial prolongada. Gostaria muito de ver e de receber mais dessas contribuições, em diferentes cenários cronológicos. Minha intenção inicial era apenas a de traduzir um artigo deste
blog, do escritor americano J E Remy, que trata do assunto com um invejável poder de síntese. Mas, ainda pelo Twitter, ao anunciar essa proposta, recebi sugestões como sempre pertinentes de mestre
Fábio Fernandes. Ele me fez perceber que algo intencionalmente pensado para ampliar o debate poderia, por puro e incontrolado paradoxo, restringir o alcance dessas possibilidades, por servir - a expressão agora é minha - de apologia aos maneirismos punk. Até porque isso costuma gerar por si só confusão, com muitos esperando obrigatoriamente que todos os escritores importem parte do ethos próprio do cyberpunk ao trabalhar com tais derivações. Uma cobrança que pode ser resumida na pergunta "mas o que é que tem de punk neste conto?", o que equivale aproximadamente a cobrar moicanos de todos os que se dizem punk.
E, vejam só, não só concordo com isso, como já deixei algo assim registrado há mais de três anos em uma conversa pelo
Orkut - pois é, não é de hoje que me meto a falar sobre steampunk e assemelhados. Exatamente no dia 14 de março de 2007 escrevi isso por lá:
Basicamente, tudo isso é História Alternativa e ponto. Entendo que haja um bom motivo para a HA ter se subdividido em Ficção Alternativa, por exemplo, afinal há um elemento extra ali: personagens fictícios de obras alheias agindo lado a lado com personagens históricos reais, no caso.
O vaporpunk tem seu charme por trabalhar basicamente com tendências deixadas pelos pais da criança, seu Verne e seu Wells, quase sempre. Apesar da marquetagem pra cima do cyberpunk, vá lá.
Mas e os outros todos? Quer dizer, veja o caso do dieselpunk (que se passa entre as décadas de 40 e 50 com tecnologia baseada na utilizada na II Guerra); os caras arrumaram a subdivisão da subdivisão e chamaram de nazipunk (nome auto-explicativo)! Pra mim, pelo menos, parece um certo exagero.
Se alguém tem um bom roteiro de HA pra usar o Da Vinci como protagonista, não precisa criar um rótulo tão exótico quanto esse tal de clockpunk pra vender o peixe... IMHO.
No mais, se alguém tentar me convencer a classificar os Flintstones de stonepunk e os Muzzarellos (alguém mais lembra?) de sandalpunk só pode tá querendo tirar um sarro com a minha cara:)))
Juntando tudo isso, a sugestão inicial do leitor, a conversa com Fábio Fernandes e minha observação tirada do fundo do baú, vamos fazer uma adaptação da ideia original. Quero enfatizar que o objetivo não é passar receita de bolo, nem engessar a criatividade alheia dentro de conceitos pré-estabelecidos. O ponto é: há uma infinidade de possibilidades para se contar histórias de retrofuturismo, correto? Não há motivos para nos restringirmos a apenas um único período, nem que os escritores consultem um mostruário de conceitos para ver onde encaixar seus projetos.
Porém, também não há motivo para se deixar de conhecer o que já se pensou e já se escreveu sobre o tema. Mesmo para negar alguma coisa é importante que se conheça a tal coisa. Então, o que seria uma simples tradução – quer dizer, no meu caso uma tradução nunca é simples, se é que me entendem – vamos adaptar um pouco a seguir as definições apresentadas por Remy
neste artigo de uma série que trata dos muitos usos – e abusos – do sufixo punk pela ficção científica. Ele começa relembrando da sempre citada carta de K.W. Jeter à Locus Magazine na qual o steampunk acabou por ser batizado. Era abril de 1987 e o escritor procurava encontrar um termo comum para as obras escritas por ele mesmo,
Morlock Night, por Tim Powers,
The Anubis Gates, e por James Blaylock,
Homunculus, todas, de certa forma, tratando de ficção especulativa vitoriana. Ao final da carta, ele escreveu:
Pessoalmente, acho que fantasia Vitoriana vai ser a próxima grande coisa, contanto que nós possamos encontrar um termo coletivo para Powers, Blaylock e eu. Algo baseado na tecnologia apropriada da época, como "steampunks", talvez ...
Estava batizado um novo subgênero, mas também criado um monstro. A partir dali surgiram vários termos nessa mesma linha para batizar novas vertentes. Remy recuperou uma classificação geral que surgiu no suplemento de GURPS
Steampunk de William H. Stoddard: Timepunk: “É sem dúvida o mais apto para descrever o gênero futurista anacrônico como um todo”. Ao longo do texto, ele recorrerá várias vezes àquele suplemento para tirar exemplos de tecnologias baseadas em algum elemento específico que se torna o principal fator a contribuir para o avanço ficcional da humanidade. “A ciência avança, mas apenas através do uso da tecnologia específica, e o período do tempo no qual ela se origina, determina a moda, estilos artísticos e a crença religiosa”, anotou.
Dito isso, Remy passou a listar os principais exemplos de timepunk, por ordem cronológica, a maior parte tirada daquele suplemento de RPG.
Stonepunk. Como não poderia deixar de ser, a Idade da Pedra é o primeiro deles. Como exemplo, o autor cita
The Land that Time Forgot, de Edgar Rice Borroughs, e
Clan of the Cave Bear, de Jean Auel.
Bronzepunk. Em seguida, temos a Idade do Bronze, exemplificado pelos romances de
Mary Renault
.
Sandalpunk. Já é um termo que apareceu por aqui anteriormente. “Denota uma antiga civilização, muitas vezes os romanos ou alguma outra civilização da Idade do Ferro, nunca entra em colapso”, ele escreveu, lembrando que a longevidade se deve a avanços científicos beseados em tecnologias como a do
mecanismo de Antikythera.. O subgênero também é conhecido como "Classicpunk" ou "Ironpunk".
Candlepunk. O período histórico é a Idade Média, motivo para o subgênero também ser conhecido como "Castlepunk" e "Middlepunk". O escritor aponta ainda variantes: "Dungeonpunk", quando ocorre a adição de elementos mágicos, ou "Plaguepunk”, quando se enfatiza as antigas doenças que ocorreram naquela época. O exemplo citado é
Doomsday Book
de Connie Willis.
Clockpunk. Este termo é o termo que deu origem àquela discussão no fórum do Orkut. Ela se refere a uma civilização renascentista com tecnologia baseada em relógio cujos avanços tenham sido inspirados por Leonardo Da Vinci. Nas obras citadas, os romances satíricos de Terry Pratchet da série
Discworld e o livro
Pasquale's Angel
de Paul J. McAuley.
Steampunk. Chegamos então ao nosso velho conhecido. “Inspirado pela ficção científica vitoriana real (Edisonades, Scientific Romances e Voyages Extraordinaires), Steampunk foi a primeira das categorias timepunk e serve de inspiração no mundo real para cultura, tecnologia, games, moda e arte anacrofuturistas”, como lembrou o autor do post e como tentamos demonstrar por aqui. Remy anotou algumas das nomenclaturas alternativas do subgênero, como “Victorian Steampunk” e “Gaslamp Fantasy” e aponto como exemplos modernos os sempre citados por aqui
The Difference Engine
e
The League of Extraordinary Gentlemen
Western Steampunk. Temos neste ponto uma derivação do subgênero, um sub-subgênero. O período histórico é o mesmo, o que muda é a geografia, uma vez que as histórias abandonam o ambiente londrino para se passar no velho oeste americano. Classificações variáveis seriam “Weird West” e “Cattlepunk”. Ele ainda aponta uma variante denominada “Desertpunk” quando a história em questão se refere a um mundo pós-apocalíptico, “embora esse estilo de timepunk também possa ser abrangido por um cenário dieselpunk”.
Dieselpunk. Já que foi mencionado, vamos a ele. “Este termo, cunhado pelos game designers Lewis Pollak e Dan Ross para o RPG Children of the Sun, indica uma civilização da Idade Industrial com futurística tecnologia à base de petróleo”. Remy anotou que o subgênero também tem sido chamado de "Teslapunk" ao descrever a tecnologia elétrica futurista.
Atomicpunk. Neste cenário, nunca ocorreu a Grande Depressão e a II Guerra permaneceu como um prolongamento da Guerra Fria.
Nazipunk. Aqui ocorre um novo entroncamento, pois este subgênero ocorreria no mesmo período, porém com o não pequeno detalhe da vitória nazista, sendo sinônimo para ele o termo “Blitzpunk”. Conforme Fábio Fernandes argumentou comigo pelo Twitter, e eu concordo, a classificação nazipunk por si só pode gerar algum ruído indesejado e mobilizar ideias negativas a respeito do gênero. O exemplo dado pelo autor também é controverso,
The Man in the High Castle
, romance de história alternativa de Philip K. Dicky. Controverso porque o foco daquele escritor no livro – como em toda sua obra – não estava na tecnologia, nem no elemento retrofuturista. “O Dick era genial mesmo. Tanto que ele abria o leque das possibilidades. E, hoje, ficar colocando -punk em tudo,fecha”, destacou o escritor carioca que, entre outras muitas coisas, traduziu a última versão daquela obra publicada em português.
Como eu disse por lá, concordo com ele, apesar de achar genial o fato de PKD imaginar os alemães conquistando o espaço muito prematuramente em seu romance, enquanto tecnologia de entretenimento, como a televisão, ser deixada de lado e se encontrar em um estágio muito pouco desenvolvido no período em que se passa a história. Sem mencionar a ausência de comediantes judeus em um território americano dividido ao meio por germânicos e japoneses... Mas classificar o livro como nazipunk é um reducionismo bem pouco produtivo.
Transistorpunk. Continuando com a lista de Remy, temos esse subgênero que diz respeio a “uma exagerada e glamourizada sociedade da era da Guerra Fria”. Influenciaddo pelos ideais e modismos da década de 1960, o Transistorpunk também pode ser chamado de "Psychedelipunk" ou "Weedpunk", quando enfatiza elementos psicodélicos ou “tecnologias à base de cânhamo”.
Spacepunk. Por fim, o último da listagem. “No Spacepunk, as ferramentas do gênero punk se combinam com os temas de um conto de Swords and Space”. A ideia é apresentar uma civilização antiga que consegue avançar com tecnologia da era espacial. Dependendo dos detalhes da trama, poderia ainda receber a classificação de fantasia
Swords and Space.
Como podem ver, há uma infinidade de categorias, o que tanto pode expandir as possibilidades de cenários quanto pode podar a criatividade de quem tentar segui-las muito à risca. Encontrar o equilíbrio ideal é algo que cabe a cada um dos futuros escritores que desejarem trabalhar com os anacronismos tecnológicos, sejam eles amparados ou não por um sufixo punk. Para encerrar o post, e dar uma descontraída no tema, vou relembrar algumas das sugestões que dei naquele tópico já citado no Orkut e em um outro,
mais recente, sobre o assunto.
Tupãk. Tribos nômades cruzam influências de vários grupos do continente, de maias a incas, e acabam se estabelecndo no litoral do que conhecemos como Brasil lá pelo que contabilizamos como século XIII, dando início a um boom tecnológico. Quando Cabral e suas caravelas aportam nestas areias, são recebidos a rajadas da caramuru-giratória, obrigados a se render e a levar seus novos senhores a uma combalida Europa que é rapidamente conquistada. O resultado é que hoje, todos os anos, chefes da maioria das nações, com suas pinturas ritualísticas, se reunem na grande Oca do alto Xingu, para realizar o Qarup mundial. Tudo ia bem, até um certo dia 11 de Setembro.
14-Bispunk. Após realizar sua série de façanhas nos céus de Paris, Alberto Santos-Dumont entrega-se ao primeiro porrete de absinto de sua vida. No meio da ressaca, ele tem deslumbres do que seriam os sanguinolentos usos bélicos de suas criações. A epifania faz mudar seus conceitos em realação ao registro de marcas e patentes, e o brasileiro passa a se associar com empresários com o objetivo de tentar retardar ao máximo aquelas visões pertubadoras, restringindo o uso de suas invenções apenas para fins pacíficos. Logo temos um mundo em que Conversíveis Modelo T saem das fábricas para a casa das famílias mais abastadas e unidades do Mais Pesado que o Ar cuidam do transporte coletivo das massas. Mas nem tudo sai como o planejado, pois uma dupla de irmãos tem planos para sabotar aquela utopia aérea.
Mickeypunk. Nos anos 70, Richard Nixon resolve enfrentar o processo do Watergate até o fim, e por mais fantasioso que pareça, com um papo de que não sabia de nada, que foi traído por aloprados do Partido Republicano e que seria só uma vítima da mídia burguesa, ele passa a conversa nos eleitores e no congresso. Mesmo assim, percebe que seu filme está muito queimado e que precisa de uma estratégia para melhorar sua imagem mundo a fora. O político nomeia seu velho amigo Walt Disney - nesta realidade, ainda conservado em estado criogênico, após sua morte em 1966 - como Secretário de Estado e juntos passam a formular uma nova estética publictária para embaixadas e filias de empresas americanas. Em alguns meses, simpáticos robôs animatrônicos estão espalhados por toda parte e os fogos de artifício explodem no céu de meio mundo todas as noites. Todas as noite.
Shitpunk. Neste mundo, as tradições religiosas são ligeiramente diferentes: não existe a proibição para que judeus e muçulmanos comam carne de porco. A suinocultura é muito mais desenvolvida, com mais de um bilhão de consumidores em potencial, se comparado com nossa realidade. Tal produção gera tamanha quantidade de resíduos poluentes que algo precisa ser feito. A matriz de geração energética dos países produtores de porcos passa a ser o aproveitamento da bosta suína, na forma de biogás, como o carvão foi no século XIX.
PunKKK. Malcom X sobrevive ao atentado no Harlem. O líder negro entra em estado de coma, fica meses fora do ar, enquanto um verdadeiro culto à sua imagem se desenvolve entre uma boa parcela dos americanos. Quando ele se recupera, usando um discurso mais moderado, bem embalado por estrategistas políticos, se torna uma possibilidade real como candidato à Presidência, por um partido independente, ameaçando tanto republicanos quanto democratas. O país entra em convulsão, várias organizações racistas e neonazis unem forças e praticam uma série de atentados de uma costa a outra; o mais célebre deles é a destruição parcial da estátua de Abraham Lincoln em Washington.
Se alguém quiser desenvolver algumas dessas novas categorias é só entrar em contato ;-) Mas para resumir tudo o que eu quero mesmo dizer é que as possibilidades são muitas e não faz sentido se impor uma camisa de força. E que se for para usar alguma coisa daquele sufixo raptado, que seja o seu lema: "faça você mesmo". E tenho dito.