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20.1.12

A obra de Lovecraft como paródia do cristianismo

Para encerrar a série de posts sobre um dos maiores e mais influentes escritores de terror de todos os tempos, republico nesta página um artigo de autoria de Carlos Orsi Martinho que apareceu  on line pela primeira vez em outro blog que eu mantinha, o Terroristas da Conspiração.


Um ser dotado de poder ilimitado promete trazer a realidade como a conhecemos ao fim, em meio a uma série de pragas e sofrimentos, e criar outro mundo em seu lugar, onde esse ser reinará absoluto, e seus adoradores fiéis, principalmente os que sofreram agruras e perseguições em seu nome, terão uma vida eterna de delícias. Já seus adversários serão condenados a um sofrimento indescritível e infindável.

Responda rápido: estou falando de Jesus Cristo ou do Grande Cthulhu?

A vida e o trabalho do escritor americano H(oward) P(hilips) Lovecraft, criador do supracitado Cthulhu – monstro alienígena que dá nome ao conto O Chamado de Cthulhu – , foram analisados sob as mais diversas chaves, desde a psicanalítica (onde o desapreço do autor por frutos do mar, explícito na concepção de monstros sob a forma de lulas, peixes e crustáceos, já foi interpretada como sinal de repugnância pela genitália feminina) à política (onde os críticos costumam chamar atenção para o posicionamento racista e elitista que transparece em várias obras lovecraftianas). Menos conhecidas, no entanto, são as análises filosóficas e teológicas do trabalho de Lovecraft – e que, no entanto, existem.

As melhores dentre essas análises, principalmente por parte do biógrafo ST Joshi e do escritor, editor, crítico (e teólogo protestante!) Robert M. Price, apontam para um forte senso de humor subjacente ao trabalho desse escritor, que foi uma das vigas mestras da literatura de horror em língua inglesa no século passado.

Até hoje a indústria cultural, por meio de cinema, quadrinhos e livros, não se cansa de reciclar os temas e clichês que estabelecidos por ele, como a ideia de que a mitologia humana não passa de uma distorção da ciência de alienígenas que visitaram a Terra no passado distante (não, isso não foi invenção de Erich Von Däniken).

Esse senso de humor se faz presente, por exemplo, no jogo estabelecido entre Lovecraft e outros escritores do mesmo período, como Robert E. Howard (criador do bárbaro Conan), no qual um autor citava criações do outro – monstros, livros, personagens – dentro de sua obra, dando a impressão de que ambos estavam a se referir a uma fonte comum – uma mitologia obscura, ou algum tipo de iniciação mística.

O melhor exemplo desse jogo é o Necronomicon, livro fictício que conteria a verdadeira história do planeta Terra e de suas interações com raças de outros mundos e de outras dimensões.

Inventado por Lovecraft e logo adotado pelos demais autores de seu círculo – que submetiam a terríveis torturas personagens que ousassem ler o tomo proibido – o livro que nunca existiu acabou sendo levado a sério por ocultistas os mais diversos, e não são poucas as supostas “traduções” do original que circulam no mercado. Ateu, materialista e racionalista, Lovecraft certamente acharia graça disso.

A defesa de uma releitura ampla da obra lovecraftiana sob a chave da paródia não cabe aqui (e eu certamente não tenho a competência para fazê-la: quem se interessar em perseguir o assunto pode começar pelo volume The Weird Tale, de ST Joshi, e então partir para as edições da obra de Lovecraft anotadas pelo mesmo autor), mas o paralelo entre sua mitologia e o cristianismo é forte demais para não ser notado – embora, de fato, não tenha sido, durante muito tempo.

Isso talvez se deva à roupagem popularesca em que as histórias apareceram originalmente (impressas em pulp magazines) e à influência posterior de August Derleth. Principal popularizador da mitologia lovecraftiana, Derleth era católico e, talvez inconscientemente, retrabalhou muito do “mito artificial” deixado por Lovecraft num molde mais palatável de um duelo milenar entre anjos e demônios.

Mas, como escreve Robert M. Price, “os leitores de The Dunwich Horror não demoraram em notar a paródia da narrativa do Evangelho nesse conto”. Na história, uma virgem norte-americana é sexualmente possuída por uma “divindade” e dá à luz um filho que é morto pelas autoridades, depois de manifestar poderes sobrenaturais e pretensões “messiânicas”.

No conto, no entanto, os eventos são narrados fora da ordem clara apresentada nesta sinopse, e toda a trama aparece sob a forma da investigação do roubo de um exemplar do Necronomicon. Isso permite encarar a narrativa como uma simples aventura de terror e investigação, na linha que seria explorada, décadas depois, por séries como Arquivo X (ou, mais recentemente, Fringe).

Mas quando o mote principal da trama é explicitado, o paralelo com os Evangelhos é inegável, e a sugestão de que o “horror de Dunwich” representa a Segunda Vinda torna-se inescapável.

Já em O Chamado de Cthulhu, um monstro alienígena que dorme sob os oceanos reúne, por meio de mensagens telepáticas que surgem sob a forma de sonhos, um culto dedicado a adorá-lo e a preparar o mundo para o seu despertar – depois do qual a Terra será destruída e recriada.

O paralelo com a escatologia cristã – com as aparições do Cristo Ressuscitado, como a que animou Saulo de Tarso a vestir o manto do apostolado, substituídas pelos sonhos de Cthulhu, a igreja cristã pelo culto do monstro, a Nova Jerusalém do Apocalipse substituída pelo Reino de Cthulhu – também é claro.

Uma última curiosidade: The Dunwich Horror foi filmado em 1970, com o papel da virgem condenada a dar à luz o filho do alienígena a cargo de... Sandra Dee.

20.9.11

R.I.P. - Read In Peace

A única  certeza que tenho sobre 2012 é que não terei como superar ou mesmo igualar minha produção editorial deste ano, seja em papel ou no mundo virtual. E acaba de sair mais uma publicação em bytes para se juntar à verdadeira biblioteca da qual tive o prazer de participar nos últimos meses - a saber, 1000 Universos, Vapor Marginal e Hyperpulp. A mais recente da lista, ao contrário das anteriores, não é uma edição de estreia, mas sim de consolidação e de retomada de um projeto. R.I.P. 7 é a edição comemorativa dos quinze anos do site Estronho e Esquésito, um pioneiro da internet desenvolvido pelo mesmo M.D. Amado que criou a editora Estronho pela qual lançou também em 2011 as coletâneas Cursed City - Onde as almas não têm valor e Deus Ex Machina - Anjos e Demônios na Era do Vapor que contam com histórias minhas (além de Steampink, livro que tive o prazer de prefaciar). A capa pode ser vista abaixo:



Para o ezine comemorativo escrevi um depoimento breve que, ao lado de outras figuras de peso do fandom nacional, enfatizam a importância daquele site para nosso país:

Quinze anos? Em idade de cachorro isso dá mais de um século e em tempo de internet, quanto é? Respondo: é praticamente a eternidade. Sim, porque o site Estronho e Esquésito tem quase o mesmo tempo de existência da internet comercial no mundo. Quando ele estreou, em setembro de 1996, poucas eram as pessoas no Brasil que acessavam a rede com alguma regularidade, o assunto ainda era quase ficção científica. E o Estronho já estava lá, divulgando e fomentando a FC propriamente dita, o horror e a fantasia em nosso país. Desde sempre. Que seja imortal e para sempre dure. Parabéns, M. D. Amado, é uma honra ter você como editor.
Uma outra colaboração minha naquelas páginas virtuais é um artigo sobre retrofuturismo, dando espaço não apenas ao steampunk mas a outras formas de contar futuros que deixaram de acontecer em diferentes períodos do tempo. O texto é a adaptação especialmente feita para aquela revista de um post dos mais acessados deste blog, material que serviu de base para a palestra que Fábio Fernandes e eu demos na edição deste ano da HQCon. Fora isso, R.I.P. 7 traz diversas outras atrações, como o resultado de um concurso de nano e minicontos que teve como tema baile de debutantes; contos de literatura fantástica voltados ao universo infanto-juvenil, lançamento de um concurso (com direito a prêmios) para a escolha de um novo mascote para o site e muito mais. O destaque fica por conta do projeto gráfico extremamente ousado que M.D. Amado fez para a revista, usando todos os recursos que a publicação on-line permite (a começar pelo número de páginas ímpar, 59, uma impossibilidade no mundo físico). Notem o uso de cor e imaginem o que seria possível fazer no papel se os custos fossem menores. O material, bem como edições anteriores do zine, pode - e deve, claro - ser baixado aqui.

27.8.11

A questão do punk

Comentei no twitter a respeito de uma ferramenta que lamento muito não existir de forma funcional nem no próprio site nem nos clientes dele que costumo utilizar, como o Ginga e o Hootsuite. Seria um campo de busca limitado a nossos contatos por lá, algo que seria bastante útil para nos mantermos atualizados de maneira rápida e simples sobre o que falam nossos followers a respeito de determinado termo ou expressão. No caso do assunto que é o principal deste blog, por exemplo, eu teria como saber com muito mais presteza sobre que tipo de discussão a respeito do steampunk as pessoas que sigo estão fazendo. Seria útil no dia a dia e mais ainda em períodos como o atual, em que ocupações ligadas a eventos, trabalho e saúde têm diminuído o tempo e a atenção que posso prestar àquela rede.

O prólogo/nariz de cera é em virtude de um artigo que uma dessas pessoas que sigo postou na última quarta-feira, dia 24, pondo em questão um dos pontos mais polêmicos a respeito do próprio termo steampunk e seus aparentados: o sufixo punk que teima em se agarrar a todo e qualquer exemplo do retrofuturismo que se invente. O autor do artigo é Alexandre Mandarino, escritor, tradutor, meu editor na edição de estreia da revista digital Hyperpulp e meu futuro colega em uma coletânea dedicada a Sherlock Holmes. E o artigo em questão é "Colocando o 'punk'  em 'steampunk'" que pode ser lido no blog Hypervoid. Como falta a tal ferramenta no twitter e o tempo e o número de pessoas que sigo por lá não me permitem ler tudo o que se posta no site de microblogs, só fiquei sabendo do texto nesta sexta-feira, dia 26, e só hoje pude escrever este post para complementar o debate por aqui.

O texto de Mandarino, muito bem embasado na história do movimento punk para além da literatura, chegando a esferas como música e comportamento, tem trechos como o que segue:

Uma coisa sempre me incomodou no termo steampunk e em todos os demais coloque-sua-fonte-de-energia-aqui-punk que se seguiram: o termo “punk”, nestes casos, é usado de forma quase inversa à de seu uso em "cyberpunk”. Explico – e para isso voltamos aos anos 80. Aquela época onde a maquiagem de Robert Smith e os teclados de Daryl Hall e John Oates ainda eram excludentes, quando os diferentes mundos oitentistas ainda não haviam sido reabilitados por figuras como o sensacional Chromeo. Onde o Atari 2600 consolidava o seu reinado de 8 bits e quadrinistas como Frank Miller e Bill Sienkiewicz estavam ainda em seus primeiros e mais importantes passos. É nesse cenário que um canadense chamado William Gibson superou todas as suas dificuldades tecnológicas oriundas do fato de sequer possuir um computador, mixou beatniks e termos de fanzines phone phreaks e o resto é história. Mas atenção: foi o termo “punk” que foi acrescentado ao termo “cyber”, não o contrário. E isso faz toda a diferença (...)

Curiosamente esse mesmo assunto tem sido um dos temas em que mais tenho discutido neste mês. Ele já foi tocado de passagem em dois posts deste blog que acabaram de comemorar seu primeiro aniversário, chamados apropriadamente de Festival Punk e Festival Punk 2. Os mesmos posts, um ano depois, serviram de base para a palestra que Fábio Fernandes e eu demos em um evento de quadrinhos florianopolitano no final de semana de 13 e 14 de agosto. Por sua vez, em uma versão resumida daquela mesma palestra, voltei a tocar no assunto no final de semana seguinte, em outro evento, agora ligado mais à cultura japonesa. E, para o cúmulo da coincidência, na véspera da postagem de Alexandre Mandarino, ou seja, na terça-feira, dia 23 de agosto, voltei a tocar na mesma tecla. Esta última ocasião, foi respondendo a uma entrevista por email que me foi enviada por Guilherme Bryan, jornalista especializado na cultura brasileira dos anos 80, que conheci naquele primeiro evento de quadrinhos em Florianópolis, e estava preparando uma matéria a respeito do movimento punk para a Revista do Brasil.


Vou tomar a liberdade de reproduzir a pergunta de Bryan e a resposta que lhe dei, acho que resumem minha opinião a respeito da controvérsia sobre aquelas quatro letras e o que ela tem a ver com a imagem abaixo:




2 - De que modo o punk se manifesta tanto no steampunk quanto no cyberpunk?
Tudo começou no cyberpunk, na segunda metade dos anos 80, quando o prefixo realmente manteve seu sentido original. O movimento liderado por William Gibson e Bruce Sterling levou a ideologia punk ao mundo da FC, ajudando a dar muito mais relevância aos verdadeiros produtores do gênero - os escritores - e incluindo uma temática muito mais politizada e não-conformista a um mundo que não poderia ficar apenas na mão dos velhos padrões. Quando o escritor K. W. Jeter escreveu uma carta em 1987 para a revista Locus batizando o steampunk, ele apenas fazia uma analogia com o cyberpunk, o sentido original, de vagabundo, marginal, começava a se perder, pois a cultura steamer não carrega o mesmo ethos "revolucionário" do cyberpunk.
Isso foi ficando ainda mais evidente quando novos subgêneros de ficção ambientada no passado começaram a ser propostos, como o dieselpunk, a princípio um cenário pensado para os games em que a ação é nos anos entre as guerras do século XX, e também o sandalpunk (período greco-romano), o clockpunk (Renascença) e muitos outros. O prefixo continua a aparecer, mas houve um verdadeiro sequestro semântico: deixou de significar aquilo que vinha desde os tempos shakespereanos, passando pela contracultura de McNeil, para ser sinônimo de anacronismo ficcional. Mais ou menos como o X dos sanduíches vendidos no Brasil veio do cheeseburger americano, deixando o sentido de origem de lado e servindo até para batizar um X-queijo. O punk só era mesmo punk no cyberpunk, do steampunk em diante foi perdendo sua característica inicial.
É isso. Se dependesse apenas de mim, garanto que o tal sufixo seria abandonado de vez pois ele tem a tendência de trazer mais calor que luz para um debate que faz tanto sentido quanto perguntar aos Ramones o porquê de eles não usarem cabelo moicano. Por falar nisso, encerro com outro comentário que fiz lá pelo twitter naquela mesma terça-feira, 23 de agosto: "O moicano é o novo mullet". Até a próxima.




8.7.11

Semana Sherlockiana - Parte V: O artigo

Dando prosseguimento à semana dedicada ao personagem mais emblemático da Era Vitoriana faço a chamada para um artigo que publiquei no blog da mesma editora que vai lançar ainda este ano a coletânea Sherlock Holmes - Aventuras Secretas. Minha segunda colaboração para aquele espaço, sendo que a primeira também dizia respeito à criação de Sir Arthur Conan Doyle (a tradução do artigo sobre as vilãs brasileiras do Cânone, escrito pelo organizador do livro de contos, Carlos Orsi Martinho), este texto veio com a intenção de esclarecer alguns pontos que volta e mexe aparecem sempre que se menciona ficção alternativa.

Este subgênero da ficção científica toma de empréstimo criações de outros autores, sempre que possível em domínio público, para dar a elas novos direcionamentos, rumos diferentes dos que os originalmente imaginados para aqueles personagens. Holmes é uma das maiores fontes para tais exercícios de reimaginação, sendo que no Brasil há pelo menos três romances em que conterrâneos nossos o utilizaram em novas aventuras passadas em nossas terras. O mais famoso deles, sem a menor dúvida, foi o do primeiro livro do humorista e apresentador Jô Soares, O Xangô de Baker Street, um de nossos raros bestsellers. Entre os aficionados da FC, também é célebre a obra O Relógio Belisário, do pioneiro do fantástico em nossas terras José J. Veiga (1915-1999). Caso menos conhecido, infelizemente, é o do livro do catarinense Raimundo Caruso, escrito ainda nos anos 80, com reedição em 1996: Noturno, 1894 - Paixões e guerra em Desterro e a primeira aventura de Sherlock Holmes no Brasil. A obra em produção pela Editora Draco inova por ser, até onde tenho conhecimento, a primeira de nosso país a trazer contos de vários autores com o personagem, prática já usual em diversos outros mercados editoriais.



Por algum desconhecimento sobre a legitimidade de tal gênero da FC, é normal ver pessoas, até mesmo dentro do fandom, onde imagina-se deveria haver pessoas mais bem informadas, contestando tal prática da reutilização de personagens alheios. Ainda mais no caso de um mito cujas histórias originais são agrupadas em um Cânone praticamente intocável na visão dos mais puristas: os mitológicos 60 textos de Conan Doyle escritos entre 1887 e 1927. Por isso mesmo, tentei escrever um artigo que questiona as obras canônicas a partir de uma dúvida que levando sobra a produção do próprio criador. Segue o trecho inicial:

Um dos personagens mais famosos de toda a história da ficção, dos mais debatidos, dos mais reinterpretados, Sherlock Holmes é um daqueles casos em que a cria superou o criador. Até mesmo contra a vontade de seu autor, sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), que tentou encerrar a carreira do detetive vitoriano com o conto “The Adventure of the Final Problem”, escrito em 1893 para a Strand Magazine, por achar seus demais escritos eclipsados pela popularidade do personagem. Como registra a história, a tentativa foi vã e Doyle se viu obrigado a atender a demanda de editores e leitores, resgatando Holmes e o restabelecendo para novas aventuras por mais uma década e meia, até bem perto de sua própria morte. Porém, o mais famoso morador do 221-B de Baker Street superou não apenas esse ato em vida do escritor, ele também continuou existindo pela pena de muitos outros autores bem além daquele que foi oficialmente o seu último romance, O Vale do Terror, de 1915.

Neil Gaiman, Michael Chabon, Henry Turtledove, Jô Soares, JJ Veiga, são apenas alguns dos inúmeros escritores que continuaram a saga do excêntrico detetive consultor para bem além do que foi originalmente imaginado por aquele que o criou, em 1887, no livro Um Estudo em Vermelho. A lenda de Sherlock Holmes está bem viva, como atestam as páginas trimestrais de The Baker Street Journal, o mais famoso periódico de estudos dedicado ao personagem e que faz uma compilação das muitas dezenas de obras que todos os anos dão continuidade àquele legado de Arthur Conan Doyle para além das mitológicas 60 histórias originalmente criadas por ele. Mas, a pergunta que eu faço é: você tem mesmo certeza de que foram apenas seis dezenas de aventuras, quatro romances e 56 contos, as imaginadas por Doyle para seu personagem mais conhecido?

Continua

25.2.11

Brasileiros no Wold Newton Universe

Quando fiz uma nota, há exatamente um mês, sobre a participação de Carlos Orsi no The Baker Street Journal com um artigo sobre as vilãs brasileiras que atravessaram o caminho do personagem mais conhecido de Arthur Conan Doyle, lembrei de uma contribuição internacional anterior daquele escritor jundiaiense em um projeto colaborativo inspirado em outro famoso autor de ficção fantástica. Naquela oportunidade, Orsi escreveu um artigo a quatro mãos com o carioca Octavio Aragão para o Wold Newton Universe, uma expansão criada por entusiastas do conceito de Wold Newton Family criado pelo americano Philip José Farmer. Bem no início deste blog, por ocasião da morte daquele escritor que é a principal referência da chamada ficção alternativa, falei sobre o assunto:

O parceiro de Phillip José Farmer em diversos projetos, incluindo um último livro escrito a quatro mãos, Win Scott Eckert deu uma ótima entrevista ao site Comic Book Resources na qual fala de seu velho mestre, falecido no dia 27 de fevereiro. Ele explora bastante o tema dos crossovers entre personagens de diferentes autores, definindo bem o conceito tanto da Wold Newton Family criada por Farmer quanto de sua ampliação fruto de inúmeras colaborações, o Wold Newton Universe. Na imagem ao lado, vemos o monumento que lembra a queda do meteorito (ou, uma pedra extraordinária, conforme documentaram naquele memorial) na cidade inglesa que batiza tais conceitos, no século XVIII.

A entrevista já estava pronta para ser publicada uma semana antes, mas o responsável pela coluna semanal, Greg Hatcher, segurou o material e só o publicou na última sexta, acrescido de um novo depoimento de Eckert a respeito da inspiração que os livros de Farmer representaram para sua própria carreira de novelista. Uma bela homenagem ao rei dos crossovers. O texto pode ser lido aqui.

 Então, entre as "inúmeras colaborações", podemos encontrar o artigo "From Russia with madness" que foi assim definido por Orsi, em tom de brincadeira, pelo twitter, quando avisei que iria escrever um post sobre o material (vale lembrar que Martinho é o segundo sobrenome dele):

@Carlossom71 Mais um produto Aragão & Martinho, finos pseudofactuais e elegantes histórias alternativas desde 2001

Se eu tentar resumir aqui  os entroncamentos biográficos de personalidades reais e fictícias que a dupla Aragão & Martinho imaginou em seu artigo - a partir dos acontecimentos que antecederam a queda dos czares da Rússia - estragaria muitas ótimas surpresas para os leitores que ainda não conhecem o texto. Basta dizer que os brasileiros conseguiram elencar no artigo desde a eminência parda dos antigos mandatários russos, até super-heróis da Marvel e da DC, personagens de filmes, peças teatrais, seriados de TV e um enorme etcetera. O resultado é muito divertido para quem gosta das charadas intelectuais propostas por obras como A Liga Extraordinária, de Alan Moore, Anno Dracula, de Kim Newman, O outro diário de Phileas Fogg, do próprio Farmer, ou ainda A mão que cria, no qual Octavio Aragão utilizou alguns dos achados descritos no artigo. Fica minha dica de leitura para o fim de semana, lá vai o endereço novamente. Até a próxima.

4.2.11

Damas e Cavalheiros: a Vapor Marginal - Artigo

Então, mesmo passando por um dos costumeiros apagões da Net em minha cidade, quero concluir a apresentação das minhas contribuições na revista oficial do Conselho Steampunk. A pedido do editor, Bruno Accioly, escrevi um artigo que tenta analisar o interesse dos brasileiros pelo século XIX e ao mesmo tempo o interesse dos estrangeiros pelo século XIX no Brasil. Claro que também fiz um link para o que a ficção fantástica tem a ver com isso, especialmente o subgênero steampunk. Segue o início do texto:

Usando apenas quatro algarismos nos títulos de seus livros, o escritor e jornalista Laurentino Gomes vem se consolidando como um produtor de best sellers em série sobre a História brasileira. Primeiro veio 1808, a respeito da vinda da família real portuguesa para esta sua colônia ultramarina na mais ousada fuga provocada pelas Guerras Napoleônicas. O sucesso atual é o de 1822, que conta os bastidores da Independência do Brasil do ponto de vista de múltiplos personagens. Para fechar a trilogia de momentos que definiram a identidade de nosso país, haverá ainda um 1889 a ser lançado em futuro breve com a narrativa da Proclamação da República. Há muito que se pensar por aí, nestas obras de divulgação que se tornam fenômeno de vendas atraindo o interesse de dezenas e dezenas de milhares de brasileiros sobre assuntos que eles viram em algum momento de suas vidas escolares.

Ajuda a ter uma ideia ainda mais clara do quanto o tema é relevante para tantas pessoas se pensarmos além do que faz sucesso hoje. Por exemplo, qual foi o filme que marcou a retomada do cinema nacional, tornando-se um sucesso de público como há muito não era visto no país em meados dos anos 90? Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, de Carla Camurati, uma visão burlesca daquele mesmo tema do primeiro livro de Laurentino Gomes. E qual foi o primeiro produto de exportação em massa de nossa produção audiovisual, uma telenovela que atingiu mais de uma centena de países tornando-se campeã de audiência em vários deles? A Escrava Isaura, de 1976, adaptação que Gilberto Braga fez para a rede Globo do livro de Bernardo Guimarães (1825-1884), que já podia ser considerado um sucesso na época do seu lançamento em 1875.

Como podemos perceber, o fascínio pela época não é de hoje e não se restringe apenas à realidade como foi registrada oficialmente. Algo no século XIX atrai leitores, espectadores, público em geral para dedicar atenção a livros de divulgação, a romances, a programas de TV e a filmes ambientados nele com um interesse acima da média. A mistura de um Império nos Trópicos, das lutas abolicionistas, dos grandes personagens daquele tempo, de um período que foi definidor para o presente em que vivemos parece ser irresistível a muito de nossos compatriotas. E não apenas a eles, como comprovou o consagrador sucesso que a citada novela Escrava Isaura alcançou em lugares de formação tão diferente da nossa quanto a Rússia e a China. Naqueles locais, a protagonista da trama, vivida pela atriz Lucélia Santos, se estabeleceu durante um bom tempo como embaixadora não-oficial de nossa televisão em particular e de nossa cultura em geral; e o vilão Leôncio Almeida, interpretado pelo saudoso Rubens de Falco (1931-2008), tornou-se uma encarnação do Mal. Palavras como senzala entraram para o vocabulário de pessoas que talvez nunca tenham visto pessoalmente um descendente de africanos.

E nada mais natural que as apropriações do Oitocentos não se restringissem apenas àquelas exercidas por historiadores, divulgadores e autores de ficção realista. Era de se esperar que em algum momento os escritores dedicados à ficção fantástica nacional fossem se voltar também para aquele período do tempo, usando tal século como matéria prima para suas criações de ficção científica, terror ou fantasia. E a liberdade para se especular com o passado, imaginar novas possibilidades históricas, reinterpretar personagens reais ou mesmo os ficcionais que o tempo encarregou de tornar sob domínio público é o caminho natural dessa tribo que atende pelo nome de steampunkers. Quando o casamento do fantástico local com o século XIX foi oficialmente celebrado em 2009, por ocasião do lançamento da primeira coletânea nacional dedicada ao tema, a história voltou a se repetir, dentro das devidas proporções que o nicho da literatura especulativa ocupa em nosso país.
Continua na Vapor Marginal.

30.1.11

Steampunk culture

Débora Aquino, a mesma que me deu a dica daqueles corsets de origami (por sinal, um dos posts mais acessados deste blog) voltou à estética do século XIX revisitado agora em seu novo blog. Agora ela dedicou uma postagem para apresentar a seus leitores várias abordagens da cultura steampunk, como reproduzo abaixo:

Steampunk é um sub-gênero da fantasia e da ficção especulativa que entrou em destaque na década de 1980 e início de 1990. O termo designa obras ambientados em uma época ou em um mundo onde o poder do vapor é ainda amplamente utilizado. Normalmente, o século 19, e muitas vezes era vitoriana da Inglaterra, mas com elementos de destaque de uma ficção científica ou fantasia.



Steampunk  agora é uma corrente crescente de muitas pessoas que querem criar uma cultura intacta aos ideais vitorianos e modos de vida. Estes indivíduos recriam um mundo de fantasia de computadores a vapor de gerência, relógios, guitarras, máquinas fotográficas, óculos, veículos e qualquer outra coisa relacionada com tecnologia que pode ser alimentado pelo vapor.





Continua

15.11.10

O luto na Era Vitoriana

Você gosta da estética steampunk mas acha que tem marrom demais para todo lado? Acharia mais interessante se as roupas e acessórios investissem mais no preto? Pois uma boa oportunidade para compor um personagem com trajes escuros - principalmente para as damas - está dada pelas dicas elaboradas por Pauline Kisner, a Mme. Mean, em seu blog Sombria Elegância. A professora de História e maior batalhadora pelo Reconstitucionismo do século XIX - e aquém - em Santa Catarina, fez uma abrangente pesquisa sobre o luto na sociedade vitoriana. Segue um trecho do artigo e uma das ilustrações, mas a íntegra você lê aqui.


Os trajes de luto vitorianos eram dirigidos mormente às mulheres, viúvas em particular. A moda era uma maneira de isolá-las em seu momento de tristeza, como a Rainha Victoria fizera. No primeiro ano, uma mulher de luto não tinha permissão para sair de casa sem um traje completamente negro e um véu da mesma cor (weeping veil). Suas atividades se restringiam, inicialmente, à igreja. No entanto, o traje de luto era também um mecanismo de demonstrar a riqueza e a respeitabilidade de uma mulher. Algumas chegavam até a vestir os criados de luto quando o chefe da família morria. As mulheres de classe média e baixa empreenderiam grandes gastos para se adequar a esta moda. Tingir as roupas de preto e depois clareá-las novamente era algo comum. A indústria do luto se tornou tão vital para os alfaiates, que boatos eram espalhados sobre a má sorte que essa reciclagem de trajes poderia trazer. A “arte capilar” também se desenvolveu na Era Vitoriana, principalmente para permitir que os membros da família pudessem manter mementos (recordações) de seus entes queridos. Os trajes de luto eram uma parte indissociável da vida no século XIX.

Os Estágios do Luto
Na Inglaterra Vitoriana, esperava-se da viúva que permanecesse de luto por pelo menos dois anos. Essas regras eram um pouco mais flexíveis nos Estados Unidos. O luto feminino possuía uma série de estágios progressivos.

Full Morning/Luto Fechado
Durava exatamente um ano e um dia, período durante o qual a mulher usaria um traje completamente preto, liso e sem ornamentos. O ícone desse estágio era o weeping veil feito de crepe negro. Se a mulher não possuía renda própria e tinha crianças pequenas, era permitido que se casasse após esse período. Há relatos de mulheres que retomaram o preto logo no dia seguinte ao segundo casamento.

Anúncio de loja especializada em trajes de luto

29.10.10

Do Brasil com vapor

O título acima, um belo achado semântico, é a tradução do artigo que Fábio Fernandes acaba de publicar no site da Tor nesta quinzena que eles dedicam ao steampunk. Segue abaixo um aportuguesamento meu do texto em que ele apresenta ao público anglófono o cenário da cultura steamer em nosso país.

Vá em frente, pergunte a eles: no país do Carnaval, geeks, nerds e aficionados por ficção científica normalmente não são diferentes do que você encontraria, digamos, nos EUA, no Canadá, na Austrália ou no Reino Unido Eles preferem ficar com uma boa leitura ou assistindo a uma maratona de séries de TV do que se fantasiar e se divertir com o samba nas ruas, por exemplo. Mas estaria o samba tão distante da ficção científica nos dias de hoje? Talvez não: em fevereiro de 2009, uma conhecida escola de samba bem carioca, a União da Ilha do Governador, escolheu como tema o maravilhoso mundo de Júlio Verne!



Até dois ou três anos atrás, os fãs mais literários da FC ficariam horrorizados se alguém os relacionasse aos "aos geeks que se vestem como Kirk e Spock nas convenções". (Sim, nós também temos. Várias delas). Mas veio um motor a vapor que, curiosamente, parece ter mudado tudo.



Não houve nenhum evento de proporções cósmicas no Brasil ao qual podemos atribuir o início do steampunk nestas terras. Muitos dos fãs de ficção científica tradicional que leem Inglês estavam bem familiarizados com o tropos steampunk desde o início dos anos 90, especialmente desde a publicação do The Difference Engine, embora tenhamos também lido James Blaylock, Michael Moorcock, e KW Jeter (nenhum dos quais foi publicado no Brasil até hoje, com exceção de uma única história de Elric Moorcock ... e de quase trinta anos atrás, imaginem vocês).

Mas talvez as coisas tenham se colocado aos poucos em movimento por aqui com outras mídias: cinema, anime e quadrinhos. Steamboy, de Katsuhiro Otomo, Fullmetal Alchemist, de Hiromu Arakawa e A Liga Extraordinária, de Alan Moore,  vêm à mente, entre outros exemplos.

E, de repente, uma nova geração veio se juntar a nós, velhos escritores e fãs (eu tenho 44 anos e a maioria destes steamers estão com seus vinte e poucos anos, o que é muito refrescante). E as coisas estão funcionando sem problemas na subcultura steamer brasileira: não falta carvão para alimentar as fornalhas daqui.



Hoje, o Brasil tem nada menos que sete Lojas Steampunk algo ligeiramente semelhante na organização de lojas maçônicas - mas sem segredos e conspirações - em um país com 26 estados. O fato de todas essas lojas terem sido criadas nos últimos dois anos é um feito enorme. As Lojas não escaparam do olho sempre atento de Bruce Sterling, que tem agora e repetidamente escrito sobre elas em seu blog. Há também um Conselho Steampunk Brasil, que serve como um elo para essas lojas e mantém uma comunidade web, AoLimiar que agora abriga cerca de sessenta blogs relacionados ao steampunk.

E, ao final do dia, esta situação gerou um efeito inesperado, uma reversão de expectativas, por assim dizer: em 2009, foi publicada, pela primeira vez, uma antologia Steampunk brasileira, apresentando contos originais de escritores conhecidos e de novos nomes do gênero. No mês passado, nós publicamos Vaporpunk, uma colaboração Brasil-Portugal com histórias originais que vão do conto até a noveleta (Ambos serão analisados por mim aqui na próximas semanas.)
 
Vários romances steampunk estrangeiros estão começando a ser publicado por aqui em tradução para o português brasileiro: The Difference Engine vai finalmente ser visto nas livrarias brasileiras em dezembro, e atualmente estou traduzindo Boneshaker Cherie Priest (que foi nomeado para Melhor Romance do prêmio Hugo, no início deste ano) para publicação no início de 2011. (Também traduzi a versão Absolute da Liga Extraordinária, publicado este mês no Brasil). Há também uma abundância de histórias originais steampunk brasileiras. Engraçado para um país tropical, você pode perguntar? Você nunca deve ter ido a São Paulo, ou para os estados mais ao sul. Pode ficar muito frio lá, e se vestir como nos anos oitenta (os anos oitenta do século XIX, é claro).

Fábio Fernandes é um escritor e tradutor vivendo em São Paulo, Brasil. Ele traduziu aproximadamente setenta romances de diversos gêneros para o Português do Brasil, entre eles Laranja Mecânica, Neuromancer e Snow Crash. Você pode ler alguns de seus escritos em Steampunk Reloaded e no vindouro The Apex Book of World SF, Vol 2.

15.9.10

Um hacker no Cortiço

Ainda a respeito do post de ontem sobre mashups literários. Após publicar a nota, me lembrei durante a tarde de um texto no site Terra Magazine que eu havia lido anos antes, bem quando comecei a acompanhar as discussões sobre ficção científica brasileira, e que guardava alguma ressonância com o assunto. Convidado por Roberto Causo, titular daquela coluna, o pesquisador Rodolfo Londero escreveu lá o artigo "Cortiços high-tech", no início de 2007, bem antes do início de tal onda editorial, portanto. No texto ele acabou por relacionar seu tema de pesquisa de mestrado, a literatura cyberpunk nacional, com um clássico brasileiro do século XIX, O Cortiço, publicado em 1890 por Aluísio Azevedo (1857-1913).



No ano seguinte, acabei resenhando o livro Volta ao mundo da ficção científica, organizado pelo próprio Londero e por seu orientador Edgar Nolasco, por onde ele publicou sua reflexão acadêmica. Escrevi o seguinte, na crítica que pode ser lida em outro blog meu:

Rodolfo Londero, jornalista e mestre em letras pela UFMS, além de co-organizador da obra, contribui com um estudo sobre tema mais amplo em “Níveis de recepção do cyberpunk no Brasil: um estudo de casos exemplares”. Para tratar do impacto do subgênero (e movimento) criado nos EUA por William Gibson, em meados dos anos 80, o pesquisador dividiu os casos em três níveis. No primeiro, o “direto”, ele enquadra autores brasileiros que dialogam frontalmente com as obras inaugurais do cyberpunk, caso de Fábio Fernandes e de alguns contos de sua coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, do ano 2000. No que chamou de “recepção análoga”, Londero se refere a material nacional que captou o espírito do tempo que marcou a obra de Gibson, mesmo sem seguir o cânone daquele e de outros escritores americanos. Um exemplo citado é o livro Piritas siderais, cujo autor, Guilherme Kujawski afirmou em entrevista ao pesquisador que desconhecia o próprio termo cyberpunk, apesar das semelhanças entre sua obra, de 1994, e as temáticas do movimento criado uma década antes.

O nível a que o artigo dedica mais espaço levou o nome de “indireto” e seria o de obras brasileiras que dialogam com trabalhos precursores da ficção cyber. Neste conjunto de textos que compartilham um repertório semelhante ao dos americanos – por exemplo, a influência do filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott – estão as criações do cantor e performer Fausto Fawcett, como o livro Santa Clara Poltergeist, de 1991.

Mas o ponto que me interessa aqui está no encerramento daquele artigo de 2007:

Quando tentei apresentar algumas obras brasileiras que se aproximam da temática cyberpunk para uma comunidade do Orkut, um membro, após ler um resumo de Santa Clara Poltergeist, afirmou que escrever cyberpunk no Brasil "não é bem como pegar a obra O CORTIÇO e botar uma coisa HIGHTECH e acabou". Nada tão longe da verdade: para Fredric Jameson, autor constantemente citado nos debates sobre pós-modernidade, o cyberpunk é uma continuação do Naturalismo. Quando propôs isto, Jameson pensava na diluição das diferenças entre o espaço privado e o espaço público - algo que, por não ser abordado enfaticamente, não identificamos com facilidade nas obras brasileiras. Mas destaquemos o determinismo, discurso doutrinário do Naturalismo, e pensemos a literatura cyberpunk. O determinismo na literatura naturalista revela-se na influência do meio ambiente sobre as personagens e os elementos da obra. Um exemplo é oferecido pela personagem Pombinha, do romance O Cortiço (1890), de Aluísio Azevedo: uma moça virgem e recatada que se torna uma prostitua por viver num ambiente dado à promiscuidade. Já para entender o determinismo na literatura cyberpunk deve-se conceber um meio ambiente tecnológico e, portanto, um determinismo tecnológico. É a tecnologia que influencia o comportamento das personagens e os elementos da obra: as vítimas dos vírus do conto "Interface com o Vampiro"; a "falha magnética" agindo sobre Mateus em Santa Clara Poltergeist; as hipergazetas de Piritas Siderais.
Não é um belo insight e que casa muito bem com essa nova tendência do mercado editorial, brasileiro e internacional? Relembrei isso pelo Twitter e o próprio Londero me respondeu o seguinte: "O estilo do bom cyberpunk é o realismo sujo do século XIX, daí que não é difícil fazer um mashup cyberpunk d'O Cortiço". Encerro por aqui dizendo que leria com prazer um livro do tipo Um hacker no Cortiço que promovesse a fusão do cyberpunk e do naturalismo, do punk a vapor e do cibernético.



Update: Se alguém estiver a fim de fazer uma fusão das capas de O Cortiço e de Neuromancer para ilustrar o post, agradeço.

9.8.10

Festival Punk

Este post nasceu a partir da sugestão de um leitor pelo Twitter – perdão, mas na confusão daquele telégrafo sem fio, acabei perdendo o nome dele Upgrade: ele voltou a se identificar, foi este o culpado – e da observação que algumas classificações de gêneros derivados do steampunk podem provocar muita confusão, muito calor e pouca luz. A princípio, a ideia era apenas a de recolher alguns dos vários tipos de anacronismos tecnológicos, marcados com o sufixo punk, e apresentar aos frequentadores deste espaço. Meu objetivo com isso é um só: ampliar as possibilidades do retrofuturismo, evitando que um tema tão rico e tão adaptável fique restrito a apenas  um período histórico - mesmo sendo um tão interessante quanto a Era Vitoriana.

Neste sentido, já publiquei aqui um conto de Eric Novello que pode ser classificado como sandalpunk, por se passar durante o Império Romano, e em breve pretendo postar uma contribuição de um conterrâneo meu que ocorre em uma II Guerra Mundial prolongada. Gostaria muito de ver e de receber mais dessas contribuições, em diferentes cenários cronológicos. Minha intenção inicial era apenas a de traduzir um artigo deste blog, do escritor americano J E Remy, que trata do assunto com um invejável poder de síntese. Mas, ainda pelo Twitter, ao anunciar essa proposta, recebi sugestões como sempre pertinentes de mestre Fábio Fernandes. Ele me fez perceber que algo intencionalmente pensado para ampliar o debate poderia, por puro e incontrolado paradoxo, restringir o alcance dessas possibilidades, por servir - a expressão agora é minha - de apologia aos maneirismos punk. Até porque isso costuma gerar por si só confusão, com muitos esperando obrigatoriamente que todos os escritores importem parte do ethos próprio do cyberpunk ao trabalhar com tais derivações. Uma cobrança que pode ser resumida na pergunta "mas o que é que tem de punk neste conto?", o que equivale aproximadamente a cobrar moicanos de todos os que se dizem punk.



E, vejam só, não só concordo com isso, como já deixei algo assim registrado há mais de três anos em uma conversa pelo Orkut - pois é, não é de hoje que me meto a falar sobre steampunk e assemelhados. Exatamente no dia 14 de março de 2007 escrevi isso por lá:


Basicamente, tudo isso é História Alternativa e ponto. Entendo que haja um bom motivo para a HA ter se subdividido em Ficção Alternativa, por exemplo, afinal há um elemento extra ali: personagens fictícios de obras alheias agindo lado a lado com personagens históricos reais, no caso.


O vaporpunk tem seu charme por trabalhar basicamente com tendências deixadas pelos pais da criança, seu Verne e seu Wells, quase sempre. Apesar da marquetagem pra cima do cyberpunk, vá lá.


Mas e os outros todos? Quer dizer, veja o caso do dieselpunk (que se passa entre as décadas de 40 e 50 com tecnologia baseada na utilizada na II Guerra); os caras arrumaram a subdivisão da subdivisão e chamaram de nazipunk (nome auto-explicativo)! Pra mim, pelo menos, parece um certo exagero.


Se alguém tem um bom roteiro de HA pra usar o Da Vinci como protagonista, não precisa criar um rótulo tão exótico quanto esse tal de clockpunk pra vender o peixe... IMHO.


No mais, se alguém tentar me convencer a classificar os Flintstones de stonepunk e os Muzzarellos (alguém mais lembra?) de sandalpunk só pode tá querendo tirar um sarro com a minha cara:)))


Juntando tudo isso, a sugestão inicial do leitor, a conversa com Fábio Fernandes e minha observação tirada do fundo do baú, vamos fazer uma adaptação da ideia original. Quero enfatizar que o objetivo não é passar receita de bolo, nem engessar a criatividade alheia dentro de conceitos pré-estabelecidos. O ponto é: há uma infinidade de possibilidades para se contar histórias de retrofuturismo, correto? Não há motivos para nos restringirmos a apenas um único período, nem que os escritores consultem um mostruário de conceitos para ver onde encaixar seus projetos.

Porém, também não há motivo para se deixar de conhecer o que já se pensou e já se escreveu sobre o tema. Mesmo para negar alguma coisa é importante que se conheça a tal coisa. Então, o que seria uma simples tradução – quer dizer, no meu caso uma tradução nunca é simples, se é que me entendem – vamos adaptar um pouco a seguir as definições apresentadas por Remy neste artigo de uma série que trata dos muitos usos – e abusos – do sufixo punk pela ficção científica. Ele começa relembrando da sempre citada carta de K.W. Jeter à Locus Magazine na qual o steampunk acabou por ser batizado. Era abril de 1987 e o escritor procurava encontrar um termo comum para as obras escritas por ele mesmo, Morlock Night, por Tim Powers, The Anubis Gates, e por James Blaylock, Homunculus, todas, de certa forma, tratando de ficção especulativa vitoriana. Ao final da carta, ele escreveu:


Pessoalmente, acho que fantasia Vitoriana vai ser a próxima grande coisa, contanto que nós possamos encontrar um termo coletivo para Powers, Blaylock e eu. Algo baseado na tecnologia apropriada da época, como "steampunks", talvez ...

Estava batizado um novo subgênero, mas também criado um monstro. A partir dali surgiram vários termos nessa mesma linha para batizar novas vertentes. Remy recuperou uma classificação geral que surgiu no suplemento de GURPS Steampunk de William H. Stoddard: Timepunk: “É sem dúvida o mais apto para descrever o gênero futurista anacrônico como um todo”. Ao longo do texto, ele recorrerá várias vezes àquele suplemento para tirar exemplos de tecnologias baseadas em algum elemento específico que se torna o principal fator a contribuir para o avanço ficcional da humanidade. “A ciência avança, mas apenas através do uso da tecnologia específica, e o período do tempo no qual ela se origina, determina a moda, estilos artísticos e a crença religiosa”, anotou.

Dito isso, Remy passou a listar os principais exemplos de timepunk, por ordem cronológica, a maior parte tirada daquele suplemento de RPG.



Stonepunk. Como não poderia deixar de ser, a Idade da Pedra é o primeiro deles. Como exemplo, o autor cita The Land that Time Forgot, de Edgar Rice Borroughs, e Clan of the Cave Bear, de Jean Auel.


Bronzepunk. Em seguida, temos a Idade do Bronze, exemplificado pelos romances de Mary Renault.


Sandalpunk. Já é um termo que apareceu por aqui anteriormente. “Denota uma antiga civilização, muitas vezes os romanos ou alguma outra civilização da Idade do Ferro, nunca entra em colapso”, ele escreveu, lembrando que a longevidade se deve a avanços científicos beseados em tecnologias como a do mecanismo de Antikythera.. O subgênero também é conhecido como "Classicpunk" ou "Ironpunk".

Candlepunk. O período histórico é a Idade Média, motivo para o subgênero também ser conhecido como "Castlepunk" e "Middlepunk". O escritor aponta ainda variantes: "Dungeonpunk", quando ocorre a adição de elementos mágicos, ou "Plaguepunk”, quando se enfatiza as antigas doenças que ocorreram naquela época. O exemplo citado é Doomsday Book de Connie Willis.


Clockpunk. Este termo é o termo que deu origem àquela discussão no fórum do Orkut. Ela se refere a uma civilização renascentista com tecnologia baseada em relógio cujos avanços tenham sido inspirados por Leonardo Da Vinci. Nas obras citadas, os romances satíricos de Terry Pratchet da série Discworld e o livro Pasquale's Angel de Paul J. McAuley.


Steampunk. Chegamos então ao nosso velho conhecido. “Inspirado pela ficção científica vitoriana real (Edisonades, Scientific Romances e Voyages Extraordinaires), Steampunk foi a primeira das categorias timepunk e serve de inspiração no mundo real para cultura, tecnologia, games, moda e arte anacrofuturistas”, como lembrou o autor do post e como tentamos demonstrar por aqui. Remy anotou algumas das nomenclaturas alternativas do subgênero, como “Victorian Steampunk” e “Gaslamp Fantasy” e aponto como exemplos modernos os sempre citados por aqui The Difference Engine e The League of Extraordinary Gentlemen



Western Steampunk. Temos neste ponto uma derivação do subgênero, um sub-subgênero. O período histórico é o mesmo, o que muda é a geografia, uma vez que as histórias abandonam o ambiente londrino para se passar no velho oeste americano. Classificações variáveis seriam “Weird West” e “Cattlepunk”. Ele ainda aponta uma variante denominada “Desertpunk” quando a história em questão se refere a um mundo pós-apocalíptico, “embora esse estilo de timepunk também possa ser abrangido por um cenário dieselpunk”.


Dieselpunk. Já que foi mencionado, vamos a ele. “Este termo, cunhado pelos game designers Lewis Pollak e Dan Ross para o RPG Children of the Sun, indica uma civilização da Idade Industrial com futurística tecnologia à base de petróleo”. Remy anotou que o subgênero também tem sido chamado de "Teslapunk" ao descrever a tecnologia elétrica futurista.


Atomicpunk. Neste cenário, nunca ocorreu a Grande Depressão e a II Guerra permaneceu como um prolongamento da Guerra Fria.

Nazipunk. Aqui ocorre um novo entroncamento, pois este subgênero ocorreria no mesmo período, porém com o não pequeno detalhe da vitória nazista, sendo sinônimo para ele o termo “Blitzpunk”. Conforme Fábio Fernandes argumentou comigo pelo Twitter, e eu concordo, a classificação nazipunk por si só pode gerar algum ruído indesejado e mobilizar ideias negativas a respeito do gênero. O exemplo dado pelo autor também é controverso, The Man in the High Castle , romance de história alternativa de Philip K. Dicky. Controverso porque o foco daquele escritor no livro – como em toda sua obra – não estava na tecnologia, nem no elemento retrofuturista. “O Dick era genial mesmo. Tanto que ele abria o leque das possibilidades. E, hoje, ficar colocando -punk em tudo,fecha”, destacou o escritor carioca que, entre outras muitas coisas, traduziu a última versão daquela obra publicada em português.

Como eu disse por lá, concordo com ele, apesar de achar genial o fato de PKD imaginar os alemães conquistando o espaço muito prematuramente em seu romance, enquanto tecnologia de entretenimento, como a televisão, ser deixada de lado e se encontrar em um estágio muito pouco desenvolvido no período em que se passa a história. Sem mencionar a ausência de comediantes judeus em um território americano dividido ao meio por germânicos e japoneses... Mas classificar o livro como nazipunk é um reducionismo bem pouco produtivo.



Transistorpunk. Continuando com a lista de Remy, temos esse subgênero que diz respeio a “uma exagerada e glamourizada sociedade da era da Guerra Fria”. Influenciaddo pelos ideais e modismos da década de 1960, o Transistorpunk também pode ser chamado de "Psychedelipunk" ou "Weedpunk", quando enfatiza elementos psicodélicos ou “tecnologias à base de cânhamo”.


Spacepunk. Por fim, o último da listagem. “No Spacepunk, as ferramentas do gênero punk se combinam com os temas de um conto de Swords and Space”. A ideia é apresentar uma civilização antiga que consegue avançar com tecnologia da era espacial. Dependendo dos detalhes da trama, poderia ainda receber a classificação de fantasia Swords and Space.


Como podem ver, há uma infinidade de categorias, o que tanto pode expandir as possibilidades de cenários quanto pode podar a criatividade de quem tentar segui-las muito à risca. Encontrar o equilíbrio ideal é algo que cabe a cada um dos futuros escritores que desejarem trabalhar com os anacronismos tecnológicos, sejam eles amparados ou não por um sufixo punk. Para encerrar o post, e dar uma descontraída no tema, vou relembrar algumas das sugestões que dei naquele tópico já citado no Orkut e em um outro, mais recente, sobre o assunto.


Tupãk. Tribos nômades cruzam influências de vários grupos do continente, de maias a incas, e acabam se estabelecndo no litoral do que conhecemos como Brasil lá pelo que contabilizamos como século XIII, dando início a um boom tecnológico. Quando Cabral e suas caravelas aportam nestas areias, são recebidos a rajadas da caramuru-giratória, obrigados a se render e a levar seus novos senhores a uma combalida Europa que é rapidamente conquistada. O resultado é que hoje, todos os anos, chefes da maioria das nações, com suas pinturas ritualísticas, se reunem na grande Oca do alto Xingu, para realizar o Qarup mundial. Tudo ia bem, até um certo dia 11 de Setembro.


14-Bispunk. Após realizar sua série de façanhas nos céus de Paris, Alberto Santos-Dumont entrega-se ao primeiro porrete de absinto de sua vida. No meio da ressaca, ele tem deslumbres do que seriam os sanguinolentos usos bélicos de suas criações. A epifania faz mudar seus conceitos em realação ao registro de marcas e patentes, e o brasileiro passa a se associar com empresários com o objetivo de tentar retardar ao máximo aquelas visões pertubadoras, restringindo o uso de suas invenções apenas para fins pacíficos. Logo temos um mundo em que Conversíveis Modelo T saem das fábricas para a casa das famílias mais abastadas e unidades do Mais Pesado que o Ar cuidam do transporte coletivo das massas. Mas nem tudo sai como o planejado, pois uma dupla de irmãos tem planos para sabotar aquela utopia aérea.


Mickeypunk. Nos anos 70, Richard Nixon resolve enfrentar o processo do Watergate até o fim, e por mais fantasioso que pareça, com um papo de que não sabia de nada, que foi traído por aloprados do Partido Republicano e que seria só uma vítima da mídia burguesa, ele passa a conversa nos eleitores e no congresso. Mesmo assim, percebe que seu filme está muito queimado e que precisa de uma estratégia para melhorar sua imagem mundo a fora. O político nomeia seu velho amigo Walt Disney - nesta realidade, ainda conservado em estado criogênico, após sua morte em 1966 - como Secretário de Estado e juntos passam a formular uma nova estética publictária para embaixadas e filias de empresas americanas. Em alguns meses, simpáticos robôs animatrônicos estão espalhados por toda parte e os fogos de artifício explodem no céu de meio mundo todas as noites. Todas as noite.


Shitpunk. Neste mundo, as tradições religiosas são ligeiramente diferentes: não existe a proibição para que judeus e muçulmanos comam carne de porco. A suinocultura é muito mais desenvolvida, com mais de um bilhão de consumidores em potencial, se comparado com nossa realidade. Tal produção gera tamanha quantidade de resíduos poluentes que algo precisa ser feito. A matriz de geração energética dos países produtores de porcos passa a ser o aproveitamento da bosta suína, na forma de biogás, como o carvão foi no século XIX.



PunKKK. Malcom X sobrevive ao atentado no Harlem. O líder negro entra em estado de coma, fica meses fora do ar, enquanto um verdadeiro culto à sua imagem se desenvolve entre uma boa parcela dos americanos. Quando ele se recupera, usando um discurso mais moderado, bem embalado por estrategistas políticos, se torna uma possibilidade real como candidato à Presidência, por um partido independente, ameaçando tanto republicanos quanto democratas. O país entra em convulsão, várias organizações racistas e neonazis unem forças e praticam uma série de atentados de uma costa a outra; o mais célebre deles é a destruição parcial da estátua de Abraham Lincoln em Washington.


Se alguém quiser desenvolver algumas dessas novas categorias é só entrar em contato ;-) Mas para resumir tudo o que eu quero mesmo dizer é que as possibilidades são muitas e não faz sentido se impor uma camisa de força. E que se for para usar alguma coisa daquele sufixo raptado, que seja o seu lema: "faça você mesmo". E tenho dito.