30.1.10

Torre de Vigia 15

O escritor e crítico Roberto de Sousa Causo preparou um especial sobre FC e o século XIX em sua coluna do site Terra Magazine. Dividido em três partes, o especial aborda, como não poderia deixar de ser, o subgênero steampunk. No texto "Balanço 2009: ficção científica e o século 19", ele comenta, entre outras obras lançadas no Brasil, a coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário, da qual é um dos contistas. Abaixo, alguns trechos:




A ficção científica do século 19 e o século 19 na ficção científica fizeram parte de uma das principais tendências do gênero em 2009. (...) O outro lado dessa tendência bastante atual é a de refletir a estética e a imagética da FC do século 19, na FC do século 21. Eu falo da corrente steampunk, um tipo de ficção científica recursiva com alguma ocorrência anterior no Brasil, mas que teve a bandeira levantada com a publicação da antologia Steampunk: Histórias de um Passado Extraordinário (Tarja Editorial), organizada por Gianpaolo Celli. O livro traz histórias de Celli, Claudio Villa, Jacques Barcia, Romeu Martins, Flávio Medeiros, Fábio Fernandes, Alexandre Lancaster, Roberto de Sousa Causo e Antonio Luiz M. C. Costa, além de uma capa muito boa de Marcelo Tonidandel. Antologia pioneira, tem despertado bons comentários de blogs e da comunidade steampunk nacional e internacional.


No segundo texto, Causo resenha uma outra antologia, já comentada por aqui: a organizada pelo casal americano Ann e Jeff VanderMeer.





No mundo de língua inglesa, o steampunk existe em diferentes estágios desde fins da década de 1960, mas há poucos anos é que foram publicadas as primeiras antologias montadas para chamar a atenção sobre o subgênero. Steampunk, pelo casal VanderMeer, é uma de duas dessas antologias. A outra é Extraordinary Engines, editada por Nick Givers, também de 2008, mas com histórias originais.


A antologia dos VanderMeer é retrospectiva e didática, incluindo três ensaios. O melhor deles é de longe o de Jess Nevins, altamente recomendado. Nevins afirma que "uma história correta do steampunk deve começar com os dime novels do século 19, pois é lá que estão as raízes do steampunk, e é contra os dime novels que a primeira geração de escritores steampunk reagia". Assim, ele puxa essa tradição para os Estados Unidos, quando antes o subgênero era mais associado à Inglaterra e França.


Por fim, o especial se fecha com uma segunda resenha, de um livro que é fundamental para este blog e sua noveleta homônima. Em "Atirando para a Lua"  é feita a análise da obra Da Terra à Lua, de 1865.





Neste que foi um dos mais interessantes romances de viagem interplanetária do século 19, Verne imagina que, sem ter muito o que fazer depois do fim da Guerra da Secessão (1861-1865), os membros do Gun Club de Baltimore, liderados pelo industrioso Impey Barbicane, decidem construir um supercanhão e disparar um projétil contra a Lua.

Como na maior parte da venerada coleção Voyages Extraordinaires desenvolvida por Verne para o editor Pierre-Jules Hetzel (1814-1886) e publicados como folhetins na revista de Hetzel, Magasin déducation et de récréation (e depois em livro), neste romance há uma evidente preocupação didática. "Educação e diversão", constavam do nome da revista, e além de incorporar o didatismo sobre a Lua, sobre balística e geografia, De la Terre à la Lune é uma divertida comédia. Os membros do Gun Club são descritos como um bando de obcecados industriais e artilheiros sobreviventes da guerra civil, a maioria faltando uma perna, mão, olhou ou braço. Há humor também no modo como o projeto de construir o canhão e dispará-lo contra a Lua galvaniza a população americana e leva os estados do Texas e da Flórida a uma disputa pelo local da construção.

29.1.10

Bazar 2010

As duas editoras que mais investem em ficção científica nacional juntam forças em um mesmo evento, com grandes descontos para os leitores. É amanhã, em São Paulo. Clique no convite para ampliar.

Torre de Vigia 14

Um depoimento do escritor e editor Gerson Lodi-Ribeiro sobre meu conto na coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário já havia me deixado feliz quando feito ao vivo, aqui em São José, no dia 22 de janeiro. Agora, já que foi registrado em seu blog, fico ainda mais satisfeito e o copio para minha clipagem.

Conversei com Romeu sobre seu recente interesse pelo subgênero steampunk e ele confirmou que começou a se interessar quando surgiu o convite para participar da antologia homônima editada pela Tarja. Além de ter participado dessa iniciativa, ele criou um blog sobre o assunto. Aproveitei o ensejo para elogiar seu trabalho na antologia, afirmando que era um dos três melhores, ao lado dos de autoria de Roberto de Sousa Causo e Antônio Luiz da Costa.


Sempre lembrando que o protagonista da noveleta "Cidade Phantástica", João Octavio Ribeiro, deve seu sobrenome a uma homenagem a este carioca (foto de Ivan Jerônimo).

Voo com escalas

Personalidade paradigmática da história nacional, símbolo tanto da criatividade pátria quanto de um certo desprezo pelo cultivo mais pragmático desta qualidade, Alberto Santos-Dumont (1873-1932) ainda não despertou nos ficcionistas brasileiros o interesse que sua figura mereceria. No dia 20 de janeiro, em uma comunidade do Orkut, um participante levantou a questão se já havia alguma história steampunk aproveitando o pioneiro da aviação como personagem. Logo, os demais participantes começaram a fazer uma lista de obras e de autores que imaginaram tal conceito: o romance Bilac vê estrelas, de Ruy Castro, que já foi resenhado no site da Loja São Paulo do Conselho Steampunk; e as noveletas “O plano de Robida: um voyage extraordinaire", de Roberto Causo, na coletânea Steampunk – Histórias de um passado extraordinário; e “Pais da aviação”, de Gerson Lodi-Ribeiro, na antologia 20 voltas ao redor do Sol. Entrei depois no debate para acrescentar mais duas obras à listagem, outro romance chamado O escritor, o aviador e o jornalista, do publicitário Aluízio Falcão Filho, que imagina uma amizade entre o brasileiro e o francês Jules Verne (1828-1905) e sobre o qual talvez eu fale em outra ocasião, e o romance interativo Conspiração Dumont que é o tema desta resenha.

Não sei se foi devido a tal tópico que acabei prestando atenção ao livro numa visita a uma banca de revistas ou se antes o produto realmente não estava naquelas prateleiras, apesar de ter sido produzido em 2007. O fato, porém, é que minha curiosidade foi despertada e como a obra estava a um preço bem convidativo – ao contrário de outros lançamentos da editora Devir – acabei a comprando e lendo. Ou melhor dizendo, jogando, pois um romance interativo, ou ainda, aventura solo como destaca a capa do livro, é um meio termo entre uma obra literária e um jogo de RPG, desses de tabuleiro. O leitor é convidado a interagir com o texto, escolhendo entre opções múltiplas as ações dos personagens principais - por vezes com a ajuda de um dado para decidir a sorte - e, com isso, alterando o andamento da trama. É exatamente essa a proposta dos autores Renato Silvestrini e Marcus Ferreira, com sua história base do investigador da Scotland Yard agindo na França para acompanhar um caso que já levou a morte um companheiro seu e que envolve espionagem industrial e sabotagem nas vésperas de Santos-Dumont empreender o voo de seu projeto mais ambicioso, o do mais pesado que o ar 14 Bis. Estamos no ano de 1906, em um rota que vai de Londres a Paris atraindo a atenção de personagens alemães e americanos.

O formato não chega a ser novidade, há várias obras que exploram tal interatividade possível que torna o leitor um jogador. Mas o sistema elaborado por Silvestrini, que estreou no gênero com a obra Na trilha do lobisomem, é mais eficiente que a maioria daqueles com os quais já travei contato desde os anos 80. Ele leva em conta o fator tempo decorrido na investigação e, de acordo com as escolhas feitas por nós, a história realmente evolui, sendo bem afetada pelas ações mais impulsivas ou mais refletidas. Dentro dos parâmetros possíveis, o roteiro pode variar entre uma ação quase típica de ficção hard boiled ou uma cadência mais detetivesca. Para garantir que a ambientação de época não saísse do rumo, o escritor chamou para o projeto alguém com formação em história, Marcus Ferreira, dividindo a autoria do romance interativo. Com isso, diminui bastante a chance de encontrarmos informações erradas, como me pareceu, a princípio que seria uma relacionada ao pintor Vincent Van Gogh (1853-1890), mas cuja explicação em uma das linhas possíveis do roteiro acaba sendo convincente. Um cuidado que se soma ao belo tratamento gráfico do produto, que tem uma capa muito boa e algumas fotos internas cedidas pelo Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica. Só faltou mais atenção à revisão e a uma elaboração mais bem resolvida do texto.

Todas as citadas possibilidades distintas de variação na trama impedem que a resenha seja muito detalhada. É impossível saber quais serão os rumos que um eventual jogador vai trilhar. Quais e quantos, pois apenas levando-se em conta o destino final da viagem, a dupla de autores proporciona 27 finais diferentes entre as 200 opções distintas. Ou melhor, o número final pode ser 200, mas na verdade são 199, em uma brincadeira com as manias de seu personagem título Conspiração Dumont pulou a opção número oito, exatamente como o mineiro fez antes deles, como lembra um aviso na página sete: “Santos-Dumont construiu seis balões e oito dirigíveis, todos apelidados com números, pulou o número 8 por ser supersticioso e achar que o ‘8’ dava azar. Achamos que seria bom respeitar a superstição dele e pular o número 8 nesse livro também”. Mesmo com tal ausência, sobra bastante material para o jogador se divertir com uma trama que pode não ser steampunk stricto sensu, mas envolve uma corrida tecnológica bastante interessante, um personagem ainda pouco explorado em nossa ficção e, a depender das escolhas feitas, ainda a possibilidade de interagir com personalidades históricas como os pintores Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Pablo Picasso (1881-1973) ou outra pioneira dos céus, Aída de Acosta (1884-1962).

27.1.10

Dragões do Império 2

Mais alguns detalhes do fardamento dos Dragões do Império, agora tomando como base a distinção que há entre as diferentes patentes dos militares. A referência usada foram informações visuais deste fórum.


Dragão do Império - Oficial

 

Dragão do Império - Graduado




Dragão do Império - Soldado


25.1.10

Dragões do Império

Para a noveleta "Cidade Phantástica" peguei emprestada da história brasileira uma força policial com um nome tão poético que parecia ser fictício: a Polícia dos Caminhos de Ferro. Foi assim que descrevi, em um dos primeiros posts deste blog, aquela instituição:

Pode até parecer, mas essa força policial não é somente uma invenção para o universo ficcional de Cidade Phantástica. Polícia dos Caminhos de Ferro foi realmente o nome da primeira corporação de segurança especializada do Brasil, criada antes mesmo da inauguração de alguma estrada de ferro no país.

D. Pedro II fundou a instituição por força de um decreto régio em julho de 1852. Apenas dois anos depois, em abril de 1854, terminou a construção da ferrovia por onde circulou a locomotiva número um do Brasil, a Baroneza (conforme grafia da época), apelido recebido para homenagear a esposa do Barão de Mauá.

Na noveleta que dá continuação à primeira desventura de João Fumaça surge um novo aparato de segurança naquela versão mais industrializada do Brasil no século XIX. Desta vez, trata-se de um grupamento fictício, porém baseado em forças armadas que realmente existiram em nosso país. Segue um trecho no qual são citados os Dragões do Império:

Na noite de hoje, alguns de seus homens garantem a proteção da corte, trajando o uniforme de gala, idêntico ao dos Dragões da Independência, conforme foi criado pelo pintor francês Jean Baptiste Debret a pedido do pai do atual Imperador. A diferença marcante entre o fardamento das duas tropas de Dragões é que no dos mais antigos predomina a cor branca; no dos que se encontram perfilados do lado de fora da Catedral de São Patrício o preto contrasta com o vermelho dos detalhes da gola, dos punhos e da faixa da cintura, além do dourado dos capacetes. Acima desses, penachos coloridos sinalizam a patente de cada militar e fazem companhia às esculturas do animal mítico que empresta seu nome àqueles militares. Os sabres na cintura dos alferes são mero enfeite, o poder de fogo deles pode ser medido pelos fuzis mecanizados do tipo Guarany que portam: armas capazes de disparar as dezenas de balas de suas câmaras com um único apertar de gatilho.

De fato, Jean Baptiste Debret (1768-1848) viveu no Brasil entre os anos de 1816 e 1831, onde registou, com pinturas e desenhos, os principais momentos que levaram à Independência do país e os primeiros anos do reinado de D. Pedro I (1798-1834). Uma de suas primeiras contribuições para o imaginário nativo foi a recriação da farda do Primeiro Regimento de Cavalaria do Exército, criado em 1808, ainda pelo Príncipe Regente D. João VI (1767-1826). Após a Independência, a denominação mudou oficialmente para Imperial Guarda de Honra. A inspiração para o desenho do uniforme veio da Tropa de Cavalaria do império austríaco, na qual também predominava a cor branca. Aquela foi a forma do pintor homenagear o país de origem da Imperatriz Maria Leopoldina (1797-1826).

Em nossa história alternativa, as duas forças ostentam o nome de Dragões já em 1866, algo que na realidade só veio a ocorrer oficialmente sete décadas depois, em 1936. Dragão é o soldado de cavalaria ligeira, em contraposição às tropas de cavalaria couraçada. Pode ser encarada como uma referência ao animal heráldico que adorna o capacete dos militares e que vem diretamente do brasão da Casa de Bragança, a Família Imperial brasileira. Na criação do fictício regimento dos Dragões do Império entrou ainda outra fonte: os Voluntários da Pátria. Foram os corpos de soldados criados em 1865 para ampliar a força do Exército e servir basicamente como frente de combate na Guerra do Paraguai (1864-1870). Neste mundo, tal conflito não ocorreu, contudo o Brasil e seus aliados (o Paraguai à frente) se encontram em outra zona de batalha no ano em que se passa a noveleta, 1868.

Quem for ler "Tridente de Cristo" deverá perceber ainda uma terceira referência na mistura que deu origem a esses dragões ficcionais; uma tropa bem mais contemporânea e bastante conhecida de nosso país. Dali veio a ideia de modificar a cor original do fardamento, como pode ser visto na pintura acima, de autoria de Debret com intervenção minha. Clicando na imagem, é possível perceber muitos detalhes do trabalho daquele artista francês.

22.1.10

O Peregrino vai ser publicado pela Draco

No último post de 2009, havia escrito que uma das atrações do Ano do Vapor seria o terceiro romance de Tibor Moricz, então ainda sem editora confirmada.

Um outro romance que também deve ser lançado no primeiro semestre do ano foi anunciado por seu autor neste post. Tibor Moricz ainda está negociando com as editoras, mas O Peregrino, terceiro livro solo a levar sua assinatura - do qual tive o prazer de ser um dos beta readers -, está praticamente garantido como uma das novidades do Ano do Vapor. A trama mistura FC e Fantasia em um cenário típico de faroeste. Quando o autor me pediu para dar uma definição da obra, arrisquei "bullets and sorcery".

O escritor acaba de confirmar em seu blog que o livro vai ser mais uma aposta da editora Draco, a mesma da coletânea Vaporpunk e do romance O Baronato de Shoah, duas outras obras com elementos steampunk:

Aguardei até que algumas negociações se resolvessem para anunciar a editora que publicará meu novo romance O Peregrino. Não acabou muito diferente do que eu já esperava, dentro de um exercício de adivinhação baseado em dados mais ou menos consistentes. A Editora Draco abraça mais um projeto para este ano e publicarei meu terceiro livro em 4 anos, com mais dois já engatilhados para breve.

O Peregrino nasceu de uma brincadeira que costumo fazer com bastante frequência. Começar a escrever sem uma ideia na cabeça. Digitando palavras seguidas, deixando-as completarem parágrafos. Um parágrafo após o outro até eu me dar conta de que algo bom está nascendo (ou me dar conta do contrário e jogar tudo fora).

Era pra ser um conto mas se transformou num romance ambientado no meio oeste americano, ano aproximado de 1870.

Começa com um homem despertando numa caverna. Seminu, cabeludo, barbudo, com unhas longas e retorcidas. Sem memória nenhuma do passado. Ao seu lado, um Colt45 reluzente como novo.

Ele sai em busca de respostas para a sua vida e acaba realizando uma longa peregrinação por três cidades – Downtown, Middletown e Uptown – numa procura contrafeita por crianças perdidas. Além delas, ele está atrás de si mesmo e de seu passado nebuloso.

Em um texto anterior, Tibor Moricz já havia listado 16 outros lançamentos previstos pela editora 2010, um levantamento que, como podemos ver, ainda está sujeito a muitas novidades extras.

19.1.10

Tridente de Cristo?

Entrevista com Jeff VanderMeer

Boa parte do interesse mundial para com o steampunk foi despertada por uma coletânea organizada por Ann e Jeff VanderMeer reunindo autores estrelados como Michael Chabon, Michael Moorcock e Paul DiFilippo. A dupla - na verdade o casal -, também responsável por uma muito elogiada e comentada antologia New Weird, foi fundamental para esta segunda onda internacional que se vê relacionada ao gênero.

Pesquisando um pouco, descobri que no dia 18 de outubro do ano passado o blog Capacitor Fantástico - dedicado a ficção científica, fantasia, terror, mistério e fantástico - publicou a tradução de uma entrevista de Jeff VanderMeer a respeito desse livro. Originalmente veiculada em inglês no Flames Rising, o material é muito interessante para quem gostaria de entender mais a recente popularidade da cultura steamer no Brasil e no mundo. Vale ainda como incentivo para que alguma editora brasileira - Conrad, Record, Aleph - se mobilize para viabilizar a versão em português da obra.

Vou citar abaixo a introdução à conversa de autoria Jeremy Jones, perfeita para o objetivo deste blog. O restante da matéria pode ser lido aqui.



Então, o que é "steampunk"?

"Algo cool, com uma linguagem elaborada. Ciência inventada - reinventada" disse James Blaylock, um pioneiro do steampunk e autor do livro Lord Kevlin's Machine.

"Steampunk (um sub-gênero da ficção científica) oferece em quantidade, aquilo que é mais visualmente excêntrico e aventureiro, sobre a época vitoriana e suas especulações científicas."

A antologia Steampunk editada por Ann e Jeff VanderMeer, faz barulho e cliques com engenhocas, dirigíveis e robôs a vapor de doze metros de altura.

As treze histórias contidas nesta coleção são reforçadas por um prefácio, uma introdução e dois ensaios. Os editores não são novatos neste tipo de ficção. Ann VanderMeer é editora da Weird Tales e Jeff VanderMeer é vencedor do prêmio World Fantasy, autor de Shriek: bem como de uma coleção de histórias conectadas, situadas no mundo imaginário de Ambergris.

"Em Steampunk", escrevem os VanderMeers em seu prefácio, "nós tentamos fornecer uma mistura do tradicional e do idiossincrático, o novo e o velho, mantendo-se fiel à idéia de steampunk como uma diversão pseudo-vitoriana sombria. Você vai encontrar histórias sobre golens mecânicos, máquinas infernais, os personagens de Júlio Verne e é claro, dirigíveis."

A antologia resultante é tanto prazeirosa como um alívio, já que os VanderMeers encontraram uma maneira de reforçar o gênero sem sugerir (ou impor) um conjunto restrito de parâmetros.

"Steampunk", diz Magpie Killjoy, editor da SteamPunk Magazine, "é uma forma filosófica de reanalisar nossas interações com as máquinas. Para este fim, encontramos na era dos motores a vapor, as promessas, verdadeiras e falsas, que nos foram oferecidas por volta do século 19. Assim steampunk é uma estética, um gênero, uma subcultura, e uma filosofia que gira em torno deste entendimento. "

No coração do steampunk, como um ethos, diz Paul DiFilippo, autor dos romances Joe's Liver e Fuzzy Dice, existe o desejo de "voltar a uma época em que a tecnologia e o artesanal ainda não tinham sido separados, quando partes do nosso mundo permaneciam inexploradas, onde o heroísmo individual vinha antes de tudo, quando a linha entre o bem e o mal era clara, e você poderia vestir-se bem".

17.1.10

Post a story for Haiti: Devilish Comedy

Crossed Genres is running a ‘donate for Haiti’ campaign by having SF/F authors link free stories to their site.  If you read the story below and like it, please consider making a donation to one of the charities listed on their site. "Devilish Comedy" is a sandalpunk/sword & sorcery piece (in Portuguese here)



Devilish Comedy

By Romeu Martins
Translated by Ludimila Hashimoto

“Never more a eunuch of the Lord!”

That was said with such resolution, still inside the royal palace, it left no doubt as to the gravity of the moment. The warrior turned his back on his former commander, then ahead, next to the exit from the oppressive environment, turned and yelled again, now beating his broad chest with his right fist.

“From this day on I use power in my own name, do you hear me? In my name only.”

Back in the streets, there was no need for energetic demonstrations. For the discontent mob that awaited him, just a nod was enough. So it was done. From the hands of a servant who waited obsequiously the warrior took the ostentatious sword - the origin of so much disgrace and destruction evoked by the master he had just forsaken.

Armed again, he strode towards the stables of the kingdom. The group of followers limited themselves to watching him from afar. The rebellious soldier chose from among the stallions the one that was red in color, the most vigorous and unruly of all. When the horseman, owner of the animal, went over and tried to understand the situation, he heard the voice that cannot be disobeyed.

“I am taking thy horse as a symbol of my intents. But thou and thy brothers shall wait, for I am returning soon to put an end to the idleness that afflicts those who cannot stand the impositions of that despot. That will be the day when the war will satisfy the hunger and thirst with long overdue rewards postponed in the name of cowardice.”

The horseman showed no objection, on the contrary; he gave way to the rebel with a smile on his face, concealed only by his bushy beard. Then he headed home to give his three twins the news: the days of glory, so long announced, were coming without further delay.

Sword on his back, ride between his legs, the soldier left the reign followed by a legion of faithful warriors. Many others would have followed him, but the fear of offending and stirring up the wrath of the ruler of those domains did not allow such boldness. However, even the most innocent of the cherubs knew that the days would never be the same again. The seeds of uncertainty then sowed were soon to show its blossoms. The nights of the Great Bonfires would soon resume to producing many other victims.

The journey of the revolutionary who renounced the High Lands would be neither quick nor easy. Before achieving their goal they went past intervenient cities, located in the perpetually litigious nation, and between the two major powers at the time. Even though he was aware of the importance of discipline among the troops, the general of the rebellious force allowed his men to plunder the villages on their long passage. Pillage, drinking and women would improve the army’s vitality after long days under the rules that annoyed everyone. Rules which, in the end, were the main reason why they had decided to follow a new leader.

The temporary rest would be used by the warrior to send emissaries ahead to the final destination of the march, in order to advance the plans he had in mind and which had been shared with very few members of his infantry. He would also use the time to write and reread letters that spoke of promises of love tender as flower pouring honey, dark grapes, flowers and dance, bodies and pain, incense and scent.

In times like this, the veteran of so many bloody battles caught himself sighing like a mere poet in love.

As they finally arrived at the doorway of the Lower Reign an army had already been lined up there to surprise most of the legionaries. The local force exceeded by far the visiting contingent both in number and in power of weapons. A blow of only one of their archers would be enough to kill a thousand birds in midair. Besides, the defensive troops were way better positioned, at a high place of an inexpugnable cliff.

Having achieved such an edge on his opponents gave the sovereign courage to go on the campaign in person. Apparently predictable, though not at all expected. Not from a creature known for always operating behind the scenes and for avoiding, whenever possible, physical encounters. There he was ahead of his many generals, looking down on the newly comers. No doubt he would demand that they drop their weapons and take an oath of loyalty to him. They would certainly be ordered to pay him honors in order to be admitted into his realms.

However, before either of the commanders of the opposing forces uttered any words, a voice was heard coming from the fragile looking litter that had followed the defense troops of the Lower Reign. The voice belonged to the woman who had been the queen even before the present ruler arrived for he was the usurper who had killed her first husband, taken the bloody crown and herself as part of the booty.

“Bring Lucifer on a tray for me.”

Having gotten used to betraying, the Prince of Lies had not expected the blow. He did not even have time to attempt a reaction when the hands of those who – he believed – were his most faithful servants grabbed him and dragged him for cruelty and torture. Gripes tore the flesh which is not flesh and shed blood which is not blood. Countless vengeances eagerly desired were satisfied in those moments of rage.

It was Beelzebub the demon in charge of performing the details of the order pronounced from the litter. But the woman no longer sat in the luxuriously decorated object. Now that they did not have to worry about being seen together, the queen was next to her lover, mounted with him on the flesh-colored horse excited with the smell of blood coming from the severed head with wide open eyes and half-open mouth lying by its hooves. It is not known for certain who started the chant, but it was soon followed by thousands of voices of the angels and demons congregated there, so intensely that the claim was clearly heard by the inhabitants of the three reigns.

“Hail Gabriel, hail Persephone, the new Emperors of Hell! Guide us towards the final victory over God and Humanity!” 

Um conto para ajudar - Espírito animal

Inspirado na iniciativa do site Crossed Genres, o FC e Afins começou uma roda de contos para auxiliar as vítimas do terremoto no Haiti.


Informações sobre onde e como doar aqui, além dos outros contos participantes.


Para participar desta corrente, e pedir a colaboração dos demais colegas, republico aqui um conto de 19 de novembro de 2008, no qual citei o país caribenho.


Espírito Animal

Abrindo um pouco dos arquivos do TC.
Por Romeu Martins

A primeira coisa que você nota quando finalmente o vê pela primeira vez são as botas brancas sujas de lama. Saltando do avião para a pista de pouso clandestina - em algum lugar entre o sul do Pará e o norte do Mato Grosso, ninguém perdeu tempo para lhe explicar os detalhes geográficos – o homem macula a brancura que usa dos pés à cabeça grisalha naquele chão irregular e enlameado.

Ainda a alguma distância você o ouve falar ao celular, em um modelo semelhante ao que lhe entregaram quando aceitou ser recrutado, semanas atrás. O trecho final da conversa chega a seus ouvidos sem a necessidade de muito esforço de sua parte:

- Sim, Mr. Ayak. Vai ser muito engraçado quando todos perceberem que venceu exatamente o nosso candidato. Muita gente vai se surpreender, com toda certeza. Mande um abraço a Mr. Akia.

O nervosismo bate. Você aperta ainda mais as mãos na expectativa de finalmente conhecer o homem por quem estava esperando há horas. Nervoso, tenta desviar o olho da figura que avança em sua direção e, só então, percebe o prefixo do jatinho que pousou poucos metros à sua frente. Você não é nem de longe um especialista no assunto, mas sempre notou que aviões no Brasil costumam ter a letra P iniciando o código de identificação pintado nas fuselagens. A mente divaga e vem a lembrança do avião que caiu com todos os integrantes de uma banda engraçadinha na metade dos anos 90, como era mesmo?, PT-LSD, sim, você se lembra claramente até das piadas que contou na época.

Porém, a aeronave que trouxe o homem que dá pernadas sobre poças de água para alcançá-lo não segue tal padrão. As letras no casco branco são azuis e não começam com P. Não, no lugar, duas outras letras que você tem percebido por todo o canto ultimamente, a ponto de quase o levar à obsessão com o tamanho e a insistência das coincidências. TC são as tais letras e depois do traço outras três: JCN. Passa pela sua cabeça se isso poderia ser um caso de personalização do prefixo, como algumas pessoas fazem com as placas do carro. Sobre o significado de TC você já tem várias pistas juntadas ao longo de meses de observação, de pesquisa e de entrevistas. E quanto às outras três letras? Seriam a iniciais do nome deste homem que se aproxima? Talvez, afinal a forma pela qual o identificaram é apenas um sobrenome, o mesmo que você balbucia enquanto ergue a mão para cumprimentá-lo.

- Sr. Neves? É um prazer finalmente conhecê-lo.

Ele retribui o gesto, apertando sua mão com mais força que seria o esperado para alguém com idade suficiente para ser seu avô. O sorriso parece genuíno.

- Ah, sim, o mais novo candidato a membro de nossa organização. Me disseram que você nos prestou bons serviços em um caso recente. Espero que tenha sido bem tratado enquanto esperava.

- Com certeza. Todos que me trouxeram até aqui foram muito cordiais, apesar de não poderem me dar tantas respostas quanto eu gostaria. Eles não sabiam me dizer exatamente quando o senhor voltaria de viagem, por exemplo.

- Ah, mas isso ninguém saberia dizer mesmo, rapaz. Estive muito ocupado com as atividades do Tulip Collectors, nos Estados Unidos, desde setembro.

- Colecionadores de tulipa? Não fazia a menor idéia que o senhor se interessava por botânica.

Ele dá uma gargalhada. Será que você falou alguma bobagem?

- Eu me interessar por flores? Isso é muito engraçado. O nome do grupo é uma homenagem a um caso que ocorreu há 400 anos, na Holanda. Foi a primeira crise especulativa registrada pela história da economia. Já ouviu falar?

- Não, pelo menos não que eu me lembre.

- Amsterdã era uma cidade rica nos anos de 1600, capital de um império que, no auge do período das navegações, consumia produtos vindos de toda parte do mundo. Um desses produtos chegava do oriente e virou mania entre os milionários holandeses. Sei que parece ficção, mas a verdade é que um único bulbo de tulipa chegou a valer o mesmo que 24 toneladas de trigo naquela época. Existe o relato, feito no século XIX, sobre um marinheiro bêbado que comeu um desses bulbos. Pensou que era uma cebola, pobre coitado. O homem ficou seis meses na prisão por isso.

- Mas é inacreditável. Como pode uma flor, mesmo sendo, sei lá, exótica , valer tanto dinheiro?

- Keynes chamou a isso, usando uma expressão emprestada de Descartes, de “Espírito animal”, a euforia que faz investidores partirem em busca do lucro. É uma característica positiva, mas quando assume ares de irracionalidade vira a versão do mercado financeiro para a febre do ouro. O resultado é que, quando alguém finalmente percebe o tamanho do buraco em que se meteu, o encanto se acaba e o efeito manada leva a uma crise generalizada. Foi assim com as tulipas holandesas do século XVII, com a crise de 1929, com o estouro da bolha da Internet...

- Ou com o mercado de quadrinhos dos anos 90!

Sua intervenção parece ter pegado o homem mais velho de surpresa.

- Quadrinhos?

- Hã, sim. Na década passada colecionadores de revistas de super-heróis, tipo Marvel e DC, sabe?, pareciam acreditar que qualquer gibi com o número 1 na capa iria valer uma fortuna em poucos anos, como aconteceu com a Action Comics, a revista em que surgiu o Super-Homem antes da II Guerra e que hoje está avaliada em uns... 800 mil dólares por exemplar bem conservado.

Você percebe pelo rosto de seu interlocutor que todos os nomes listados não fazem muito sentido para ele, então só acrescenta mais uma frase, em voz baixa, meio envergonhado:

– Mas logo aquilo mostrou ser um erro, quem comprou várias edições de um mesmo gibi dos X-Men ou do Batman, mesmo sem nunca ter tirado do plástico, percebeu que jogou dinheiro fora.

- Bem, neste caso eu sou inocente. Nunca me meti com o ramo dos quadrinhos, apesar de já ter feito serviços para a indústria de cinema dos Estados Unidos, tempos atrás. E agora, com a queda de Wall Street, eu e meus associados fizemos tanto dinheiro quanto havíamos feito com a queda do outro muro, o dos anos 80. Mas vamos entrar na base e tirar os pés deste atoleiro. Nunca vi terra pra chover tanto, é impossível se erguer um país civilizado com este clima.

Basta um aceno do homem para que as portas do complexo se abram. Durante todas as horas em que esteve esperando por seu anfitrião, não o deixaram entrar no local, protegido por uma camuflagem de selva que o torna virtualmente invisível do alto, seja de observadores em aviões seja dos olhos eletrônicos dos satélites. Você só pôde esperar em um alojamento comunitário, uma área residencial para a equipe permanente daquilo que Neves chamou de “a base”.

Não dá para dizer que impressiona muito as instalações por trás da alta e provavelmente pesada porta que se destranca à sua frente. As instalações lembram alguns laboratórios dos cursos de engenharia lá na sua antiga universidade. Um saguão amplo e uma série de escadas e passarelas de metal chumbadas em paredes de tijolo à vista são tudo o que você percebe. No chão de cimento pintado de branco vocês dois deixam pegadas de lama enquanto avançam para o interior do prédio, tão iluminado quanto uma fábrica, com iluminárias de lâmpadas fluorescentes, divididas de quatro em quatro. Poucas pessoas percorrem o lugar, algumas entram e saem pelas portas dos andares superiores. Mas todas as que notam a presença do senhor Neves, a seu lado, imediatamente trocam com ele algum cumprimento. O líder daquela equipe retribuí com simpatia, chamando boa parte dos homens e mulheres pelos respectivos nomes.

Você procura ansiosamente algo para dizer e com isso disfarçar o nervosismo com a situação. É quando nota uma placa de bronze parafusada em uma parede com aparência bem mais sólida e antiga que a do restante da base. Não dá para resistir a curiosidade em relação ao que está escrito e sua voz sai mais alta do que o planejado quando consegue ler o alto-relevo.

- TC, 1810, Príncipe Regente D. João VI...

- Surpreso com alguma coisa?

- Bem, desculpe se estou sendo indiscreto, mas não esperava uma citação tão antiga a..., bem, à nossa organização. E muito menos que ela estivesse relacionada com um antigo rei português.

Neves pára diante do retângulo metálico com certa reverência, mãos para trás, na postura de um acadêmico que estuda detalhes de alguma pintura clássica. Ele não tem pressa em falar.

- É verdade. Esta placa é um dos registros mais antigos da pré-história de nosso grupo. Ela representa o agradecimento de D. João a quem o salvou de um atentado planejado por Napoleão Bonaparte para matá-lo em solo brasileiro.

Sua cara de espanto é o suficiente para divertir o homem mais velho e o incentivar a continuar a história.

- É isso mesmo. Sei que você nunca leu sobre isso nos livros de história, mas quando a família real portuguesa conseguiu escapar do cerco francês, escoltada pelos navios ingleses, Napoleão secretamente decretou a morte de D. João e de Carlota Joaquina. Para executar a ordem, o imperador recrutou o serviço de agentes que imaginava serem leais a ele. Não contava que haveria um traidor no grupo.

- Um homem de nossa organização?

- Eu falei que esse caso dizia respeito à nossa pré-história. E essa história, como a outra que lhe contei, também diz respeito a uma flor. O fato é que umas das pessoas envolvidas na missão de matar os portugueses era diretamente ligado a um antigo inimigo dos republicanos que fizeram a revolução na França. Um homem que, disfarçando sua identidade, salvou muitos nobres da morte certa na guilhotina e que enfrentou Robespierre e seu bando de decapitadores. Este nosso amigo, assim que aportou no Brasil, conseguiu impedir os planos regicidas de Napoleão. Com isso, ganhou o reconhecimento da família real portuguesa e dos aliados ingleses e espanhóis. Aquele evento foi a origem de um pacto entre representantes dessas casas reais, cujos integrantes se faziam reconhecer por aquela sigla gravada na placa.

- T e C? – Você se arrisca a falar, quase para tirar o narrador de um transe.

- Isso, isso mesmo. Aquelas letras representavam expressões que faziam sentido na língua tanto dos aliados quanto na do inimigo de então. T e C significavam Três Coroas para os brasileiros e portugueses; Three Crowns, para os ingleses; Tres Coronas, para os espanhóis; e Trois Couronnes, para os franceses. Juntas, em selos, marcas d’água, brasões, sinetes, anéis e toda série de subterfúgios as duas letras abriam portas, serviam como senha e passe livre além de distinguir os membros de uma das mais secretas e poderosas sociedades internacionais que já existiram.

Ambos ficam devotando atenção àquela sigla centenária feita de metal. Não com menos ênfase que uma dupla de maçons dedicaria a um monumento com o G emoldurado pela régua e pelo compasso. Você mal pode acreditar que algo assim lhe foi contado com tamanha facilidade, não depois de semanas e semanas de mistérios, de tentativas dissimuladas para ganhar confiança que pareciam não dar em nada... Todo aquele trabalho estava sendo recompensado com uma conversa em tom casual revelando nada menos que duzentos anos da história secreta do seu país. E além!

Você se sente tirando a sorte grande. Tem medo de pôr tudo a perder se for muito intrometido, mas medo ainda maior é o de não arriscar. Continuar com as perguntas é sua obrigação.

- Quer dizer então que tudo começou como uma sociedade secreta monarquista?

O transe foi oficialmente interrompido. Neves tira os olhos da placa histórica e se volta para você, girando não o pescoço, mas todo o corpo. Cintura primeiro, calcanhares depois, ainda com as mãos cruzadas nas costas. Ele parece voltar a se dar conta de sua presença ali, mesmo que a expressão do rosto seja indecifrável.

- Desde o início os fundadores de nossa organização tiveram o objetivo claro de moldar a realidade de acordo com nossos interesses. Não somos nós quem devemos nos adaptar ao mundo, é ele que deve se curvar a nós. Se no primeiro momento era útil contar com a aliança de cabeças coroadas, mais tarde chegou a vez dos republicanos. Prova disso é que tanto Deodoro quanto Bolívar estiveram acompanhados nos seus momentos decisivos por agentes com o emblema TC . E assim foi ao longo das décadas, trabalhamos tanto com ditadores de direita quanto com revolucionários de esquerda; estamos ao lado de teocracias fundamentalistas e de estados ateus. Derrubamos mercados liberais do mesmo modo que arruinamos economias planificadas. No final, nossa vontade é o que conta.

É até difícil engolir em seco. A medida em que a voz dele ia se tornando mais firme e o tom se elevava, sua garganta parecia se contrair. O medo que você está sentindo deve ser tão visível ou tão sensível ao olfato de seu interlocutor que ele muda de atitude. Abandona o ar de sermão e se aproxima para dar um tapa em suas costas e voltar a guiá-lo na caminhada pelas instalações.

- Mas você está certo em sua observação. Foi nossa origem pró-monarquia que garantiu nosso futuro. D. João nomeou seu salvador como barão e concedeu muitas vantagens ao grupo que estava sendo criado naqueles dias. Entre elas, a posse de terras como o pedaço de selva em que está construída esta base. Ela começou como uma simples casamata e foi crescendo de acordo com nossas necessidades operacionais.

Neves aponta para funcionários carregando equipamentos de telecomunicação, partes de antenas de transmissão, centenas de metros de fios dourados, placas de circuito integrado. Mas ele o conduz por uma porta da ala antiga da base, longe da maior parte da agitação provocada pelo entra e sai dos técnicos.

- E deve ter sido uma coincidência e tanto vocês estarem instalados em um local com tantos acontecimentos históricos. Afinal, aqui perto fica aquela base militar onde tentaram desenvolver uma bomba atômica nacional, não é mesmo? Sem falar naquele acidente aéreo terrível...

Antes de completar a frase você se dá conta sozinho do tamanho de sua ingenuidade, algo só reforçado pelo som da risada de seu anfitrião.

- Ora, coincidência é o nome que pessoas desinformadas dão a nosso trabalho.

O local está bem mais escuro que o restante das instalações. Neves indica com um gesto que você deve continuar em frente enquanto ele se aproxima da parede oposta, onde estão localizados os interruptores. Mesmo na penumbra, pelo som de suas passadas, você percebe que a partir de certo trecho o chão não é mais de cimento. Só não consegue identificar exatamente o que seja.

- Estranho, essa parte aqui parece ser feita de um metal... mas não é de ferro, né?

Um ligeiro clique e as luzes se acendem.

- Não, não é de ferro...

Um novo som, mais seco e muito mais alto, e o chão a seus pés desaparece.

- ... é feito de chumbo, na verdade.

De chumbo ou de ferro, para sua própria e máxima surpresa, apesar dos anos de ócio improdutivo, você consegue se agarrar à borda do buraco que surge como um alçapão de desenho animado.

Mesmo com o impacto da barriga e dos joelhos contra as paredes metálicas, o desespero empresta forças suficientes para você não largar o apoio, isso às custas das unhas fincadas, arranhando ruidosamente o piso. Arfando e bufando, você tenta se manter a salvo e escalar a saída. Só que o revestimento das paredes é liso demais para seus pés conseguirem impulsioná-lo, a borracha do tênis patina, patina e não encontra aderência o suficiente. No outro extremo, os braços sozinhos não dão conta de puxar seu corpo para fora.

Neste momento, você parece brotar do chão, da altura do peito, com os braços esticados para frente e olhos esbugalhados de espanto.

Pouco a pouco, caminhando calmamente, Neves aparece em seu campo de visão. Ele se reclina um pouco para falar com você, como faria um adulto para conversar com uma criança pequena.

- Parabéns, não esperava que um bostinha feito você conseguisse evitar a queda, jornalista.

O esforço na luta contra a gravidade provoca um chiado em seus ouvidos, é como se sua cabeça tivesse se tornado um enorme balão que deixa o gás escapar por um furo microscópico. Mesmo assim, dá para ouvir claramente que aquele homem descobriu sua identidade.

- É, seu idiota, sabemos quem é você. Sabemos que você estava tentando escrever uma matéria sobre nós para aquela revistinha patética que publica seus, como é mesmo?, seus frilas. Sabe, foram vários os motivos para termos comprado nossa própria empresa de telefonia celular. Espalhar antenas por todo o Brasil foi um deles; garantir meios para que ninguém consiga grampear nossos aparelhos foi outro.

Neste momento ele se abaixa ainda mais e fala quase cuspindo diretamente em sua direção.

- Ninguém escuta nossas conversas sem nossa permissão, seu bos-ti-nha. E nós sempre – sempre – sabemos quem está tentando nos bisbilhotar.

Seus dedos começam a sangrar, as unhas parece que vão ser arrancadas pela tensão que são obrigadas a suportar. Entre suor e baba você consegue falar em um tom audível, mas não tão alto quanto os sons guturais que lhe escapam da boca e do nariz.

- Muita gente sabe que onde eu estou... se eu não voltar vão haver buscas...

A risada do outro lado é sonora.

- Você é mesmo um tolo, rapaz! O monomotor que o trouxe aqui - isso já está em todos os telejornais - sofreu um acidente e caiu no fundo do mar, com seu corpo e o do piloto. Vocês nunca serão encontrados, é claro. Neste momento, todos os arquivos de seu computador pessoal já estão conosco. Invadimos seu hotel, sua casa, o computador que você usa naquela redação... As pessoas que falaram com você, que deram entrevistas e passaram informações, serão procuradas. Você serviu direitinho para o que queríamos, jornalista. Foi nossa isca perfeita para nos mostrar elos fracos em nosso grupo.

A vontade é de largar tudo e se deixar cair. Só o instinto, na forma de um iceberg gelado na barriga e no de pêlos ouriçados na nuca, é que o impede de se entregar ao precipício.

- Mas depois de todo esse esforço, você merece ao menos a confirmação da história que veio buscar. Sim, o que você leu naquele documento militar confidencial que lhe entregaram estava certo, é tudo verdade. Havia mais um projeto secreto financiado com dinheiro das contas Delta durante a última ditadura. Não era só o exército que queria construir seu artefato nuclear; a marinha com o submarino atômico; e a aeronáutica com o míssil balístico. Existia um quarto projeto, coordenado por um grupo independente, o nosso grupo. Mas sabe qual era a diferença entre nós e eles, os militares?

Neste momento ele volta a se levantar, apenas mantém o olhar fixo em você e cutuca o polegar direito contra o próprio peito enquanto fala em voz mais alta.

- Nós tivemos o espírito animal que faltou àqueles incompetentes. Hoje, o resultado de nossa pesquisa está usando um capacete azul no Haiti.

Neves avalia durante alguns segundos o efeito que as palavras tiveram sobre você. Porém seu estado não é muito promissor para continuar a conversa. A dor, o cansaço e a gravidade vão vencer a luta a qualquer momento.

- Posso ajudá-lo em mais alguma coisa para a sua matéria, jornalista? Quem sabe quer mais alguma declaração minha ou uma foto para a capa da revista? Já sei, que tal uma imagem do futuro para você? Tome!

A última coisa que você vê é a bota enlameada vindo em sua direção. Ela esmaga seu nariz e o empurra em uma queda de dezenas de metros até o fundo de um túnel com uma inquietante fosforescência radioativa. O brilho tênue vai se apagando aos poucos diante de seus olhos.

Feliz aniversário, Envelheço na cidade

Este blog foi criado há um ano, no dia 17 de janeiro de 2009, data em que postei o início do texto que estava escrevendo para concorrer a uma vaga na coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário. Para comemorar o ciclo, posto abaixo a continuação da noveleta "Cidade Phantástica" que escrevi  para concorrer a outra vaga, em outra coletânea. Comentários são bem-vindos. Obrigado por um ano de leitura.

Tridente de Cristo


Largo da Carioca, na esquina das ruas do Necrotério com a do Padeiro. Início de fevereiro.

– Chegou uma carta, João. – Gritou a voz de mulher por trás da porta ainda trancada com a cancela, de cujo vão lateral se viu expelir um retângulo branco, como se fosse a língua de um paciente muito doente. – E, pelo amor de Santa Edwiges, não se esqueça do dia do vencimento do aluguel.

Havia um envelope dentro de outro. O primeiro bem simples, sujeito a se sujar e a ser amassado pelo trato não muito cuidadoso do serviço de Correios do Brasil, instituição que estava para completar meio século de existência dali a um par de anos, mas não era reconhecida pela fineza de seus funcionários. Tanto que, de início, nem permitiam o uso da efígie do Imperador para ornar os selos pátrios, com o receio de o vilipendiarem com carimbos e outras mundanices. Passada essa fase inicial, era a face imperial de Dom Pedro II, impressa em vermelho, a fitar como se fosse um irmão mais velho o homem que juntou do chão aquele intruso retangular. Estava endereçado a João Octavio Ribeiro, morador de um quarto alugado naquele casarão a meio caminho do necrotério do Hospital da Ordem Terceira da Penitência e de uma padaria famosa na região. Foi ele mesmo, um ainda jovem agente da Polícia dos Caminhos de Ferro, apesar dos cabelos e da barba acinzentadas nas vésperas dos trinta anos, quem abriu este primeiro e ordinário pedaço de papel antes de responder ao grito de sua senhoria. Ainda estava em roupas de baixo, ou seja, de cuecas cinza e camisa branca.

– Meus agradecimentos, dona Marta. E fique tranquila, assim que me for pago o soldo porei em dia minhas obrigações com a senhora. Tenha um bom dia.

Já o segundo envelope era coisa bem outra. Resistente, alvíssimo por natureza e sem máculas externas, como carimbos e selos. Ali, o nome grafado em uma caligrafia apurada e com o uso de uma poderosa tinta preta era João Fumaça. A alcunha que o agente da lei carregava desde que sua mãe lhe dera à luz em uma pequena cidade inglesa estando de carona em uma locomotiva a vapor. Os dotes de investigador do policial não chegaram a ser exigidos para descobrir quem lhe havia enviado a dupla de envelopes. Bastou desvendar as curvas, volteios e rococós do nome dos remetentes escrito com caligrafia ainda mais caprichada no papel da carta. Ou não propriamente carta, tratava-se, para ser o mais exato possível, de um convite.

O convite para o casamento do multimilionário americano J. Neil Gibson, Rei do Ouro, com a manauense Maria Pinto. João Fumaça conheceu os noivos dois anos antes, em uma aventura que quase custou a vida do trio ali mesmo, no Rio de Janeiro, a dita Cidade Fantástica, às margens da praia de Copacabana. Alguns ossos do policial ainda doíam nos raros meses mais frios do ano. Segurando os papeis, ele procurou se escorar em sua melhor cadeira – na verdade, a única disponível naquele quarto –, deu uma cuspida em direção à escarradeira e ganhou fôlego para continuar a leitura.

Relembrar os eventos de dois novembros atrás não lhe era fácil. Afinal, foram momentos de tensão que quase levaram o Império à guerra com as nações vizinhas. Por isso mesmo, o caso havia sido parcialmente encoberto, bem poucos detalhes chegaram ao público. Na verdade, só o que havia para ele se recordar daquela ocasião balançava em seu pescoço: uma medalha dourada, mas não de ouro, também com a imagem severa do Imperador. O agraciado sempre a usava, dia e noite, amarrada em uma fita com as cores verde e amarela. Mas o hábito de portar tal ornamento havia se tornado mecânico; com o decorrer dos dias, a medalha tornou-se tão parte dele quanto as cicatrizes espalhadas pelo corpo.

Valeu mesmo a pena tudo o que passou? Durante meses ele fez o possível para levar sua vida e não pensar nisso. Afinal, após tão pouco tempo, não estava seu país metido em um conflito com uma potência européia pelo controle econômico de uma ilha caribenha?

Pois relembrar agora seria inevitável. Não era nada comum que alguém de sua posição social fosse convidado para o evento que pararia a capital do Império. Todas as pessoas de importância na corte e entre o meio industrial certamente tomariam lugar na festividade que marcaria ainda a inauguração da nova Catedral do Rio de Janeiro. A corte e a indústria, simbolizadas por seus expoentes máximos, o Imperador Dom Pedro II e o recém-nomeado Conde de Mauá, padrinhos dos noivos como podia ler nos jornais, alguns dos quais espalhados pelo chão daquele quarto de solteiro.

E entre todos os nobres e empresários, estaria ele, o tal solteiro, o policial encarregado da segurança dos comboios a transportar a riqueza do país pelas estradas de ferro. João Fumaça. Uma gentileza talvez da jovem Maria, a mestiça de pai português e mãe índia que tanto o havia impressionado com sua coragem mesmo quando esteve com a cabeça na mira de armas. Ou poderia ser uma distinção do empresário americano, apesar de parecer frio e pragmático, típico aventureiro com a missão auto-imposta de se tornar milionário ainda jovem, ele lhe pareceu bem capaz do gesto por trás daquele convite.

Fosse por um, fosse por outro, fosse por ambos, agora estava o agente da lei na obrigação de atender ao chamado do papel que ainda segurava. Faltava cerca de um mês. Ele que já penava para se manter em dia com o aluguel tinha agora nova preocupação, materializada à sua frente no momento em que se levantou para abrir as portas do único outro móvel daquele cômodo, além da cadeira; de uma mesa de cabeceira, onde jazia uma Bíblia e sua arma automatizada; e da cama ainda por fazer: o guarda-roupas.

– E agora, com que roupa eu vou? – A pergunta parecia ingênua diante da resposta prática. Umas minguadas peças invariavelmente cinzentas e puídas de calças e paletós; dois pares de sapatos e um de botas.

Outro dia, outro lugar.

O erro do jovem com o uniforme preto foi não ter usado sua arma de fogo quando teve a chance, por medo de atingir o equipamento precioso à sua frente. Por culpa dessa hesitação, o homem que manuseava a pá morreu com o pescoço quebrado. Disposto a enfrentar o invasor, o uniformizado saca da espada na cintura e prepara um golpe que – ele sabe, de acordo com seu treinamento militar – deve ser fulminante, tendo como alvo a cabeça do oponente. Em sua defesa, o assassino ergue o antebraço e, para surpresa do espadachim, a lâmina que deveria cortar o obstáculo com facilidade fica presa, imobilizada. Maior surpresa é constatar que não há sangue saindo do corte, nem gritos de dor de quem recebeu o ferimento. Antes de poder fazer algo além de tentar puxar novamente sua arma, o soldado de negro, agora de guarda aberta, recebe um único soco daquele braço que deveria ter sido decepado. Forte o suficiente para esmagar a mandíbula e o jogar contra uma parede de tijolos aparentes. O som do impacto é úmido. Calmamente, o invasor retira com a mão canhota a espada ainda fixada no braço direito, caminha a passos lentos de encontro ao soldado e, diante dele, se ajoelha para terminar o serviço. De modo bastante profissional, rompe a garganta do rapaz de um lado a outro, cuidando para não sujar o traje negro. Pronto. Agora é hora de começar os preparativos para uma vingança há muito ansiada.

15.1.10

Agenda Steampunk

Uma dica de Bruno Accioly, um dos fundadores do Conselho Steampunk, nos comentários do post anterior: através da Agenda Steampunk todos os aficionados podem se informar a respeito de eventos ligados ao gênero. Neste site, é possível ainda baixar o código para a instalação do recurso visto a seguir.

steampunk agenda steampunk Agenda SteamPunk

Piquenique vitoriano em São Paulo

A Loja São Paulo do Conselho Steampunk está organizando um novo evento para os entusiastas da cultura steamer em plena Avenida Paulista.

O Conselho Steampunk mais uma vez tem a honra de convidar a todos os confrades e curiosos a respeito do gênero Steampunk para um evento especial. Um encontro no Masp seguido de um piquenique Vitoriano! O encontro terá inicio as 13:30 do dia 20 de fevereiro no vão livre do MASP e mais tarde terá continuidade do outro lado da avenida(em frente ao Masp) em um piquenique. (...)

O piquenique terá como cenário o parque Parque Tenente Siqueira Campos, mais conhecido como Parque Trianon ou Parque do Trianon, que foi inaugurado em abril de 1892 com a abertura da Avenida Paulista na cidade de São Paulo. Foi projetado pelo paisagista francês Paul Villon. O nome Trianon veio do fato de, naquele tempo, existir no local onde hoje se situa o Museu de Arte de São Paulo, em frente ao parque, um clube com o nome Trianon. O arquiteto Ramos de Azevedo desenvolveu o projeto de (1911-1914), na administração do Barão de Duprat, do chamado Belvedere Trianon, construído em 1916 e demolido em 1957 para dar lugar ao museu.

13.1.10

The difference engine vai sair no Brasil

Estava ainda ontem dizendo que o Ano do Vapor se devia tanto às novidades produzidas no Brasil quanto às que devem ser lançadas em versão nacional. Pois o editor da Aleph, acaba de confirmar esse vatícinio ao comunicar na maior comunidade em português dedicada à FC do Orkut que uma obra clássica e definidora do gênero, da qual falamos aqui desde o início do blog, vai chegar às nossas livrarias. Adriano Fromer Piazzi disse: "Com imenso prazer que comunico que iremos publicar, ainda este ano, um grande clássico Steampunk. THE DIFFERENCE ENGINE, de William Gibson e Bruce Sterling".
.

No segundo post deste blog, no dia 17 de janeiro de 2009, escrevi sobre a obra:

Normalmente, um texto do tipo parte do pressuposto de algum ponto de divergência entre a nossa história e a do universo ficcional em questão. Um exemplo é o livro The difference engine, de 1990, escrito a quatro mãos pelos criadores do movimento cyberpunk Willian Gibson e Bruce Sterling. Na obra, a hipótese de partida é que o cientista e matemático inglês Charles Babbage (1791-1871) teria construído uma máquina (que chegou mesmo a projetar) : o primeiro computador do mundo, baseado apenas em peças mecânicas.

É esse livro tão importante para a parte literária da cultura steamer que logo vai ganhar versão em português com a qualidade de uma das melhores editoras a investir em ficção científica em nosso país. E quando isso vai ocorrer? Em 2010, o Ano do Vapor.

Ano do Vapor, o selo 5

Novas aquisições para a coleção de selos do Ano do Vapor. Todas as peças aqui são de autoria de Tatiana Ruiz, esposa do associado da Loja São Paulo do Conselho Steampunk, Cândido Ruiz.

12.1.10

A extraordinária Liga de Alan Moore

Este 2010 não está sendo o Ano do Vapor só por conta dos lançamentos previstos de livros e de quadrinhos steampunk nacionais. A agenda de obras estrangeiras do gênero que devem ganhar versões em nosso país também  é promissora. Já tivemos, logo nos primeiros dias do ano, o retorno da graphic novel Gotham by Gaslight e o novo filme inspirado em Sherlock Holmes, obras com fartos elementos steamers. Mas o melhor ainda está por vir, como podemos ler no blog Quadriteca de Gabriel Rocha:

O ano começa com uma boa notícia para os fãs de Alan Moore: a editora Devir vai finalmente lançar no Brasil The League of Extraordinary Gentlemen (Vol III): Century, a provável conclusão da saga da Liga Extraordinária. Mais uma vez a HQ vai contar com os desenhos de Kevin O'Neill.

Para quem não sabe, a Liga Extraordinária é uma super-equipe recrutada pelo Império Britânico e formada por personagens da literatura vitoriana. Nos dois primeiros volumes, o grupo era composto por Allan Quatermain (das Minas do Rei Salomão), Wilhelmina Murray (de Drácula), Dr. Jekyll/Mr. Hyde (O Médico e o Monstro) e Capitão Nemo (20.000 Léguas Submarinas).

O terceiro volume se passa no decorrer do século XX e início do século XXI (leia mais aqui). Century está programada para ter três partes. Apenas a primeira delas já foi lançada lá fora. A segunda deve sair em abril/maio deste ano e a última só em 2011.

Quem nunca leu nada do super-grupo não precisa ficar boiando, porque a Panini prometeu republicar o primeiro volume da Liga por aqui. Agora só vai ficar faltando uma edição nacional da graphic novel The Black Dossier, que aborda formações anteriores da Liga, para que todo o material com os personagens tenha sido publicado no Brasil.

Para comemorar essa boa nova, resolvi compilar material que saiu no volume anterior a este que vai ser publicado agora no Brasil. O texto abaixo reune as referências ao Brasil e arredores no Almanaque do Novo Viajante, uma espécie de anexo constande no Volume II da Liga Extraordinária. Quem quiser se divertir caçando referências fique à vontade para compartilhar no espaço de comentários. Eu chamo a atenção, por exemplo, quanto a crueldade de Alan Moore para com o personagem principal de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (1660-1731), cujo destino poderia ter sido muito diferente e prazeroso caso tivesse tido acesso a edições anteriores desse acalentado Almanaque.

Avançando para o norte, nas águas costeiras do Brasil, passamos pela imaculada e erudita ilha pagã de Eugea; a inóspita Nimatan, com seus requintados manicômios; a antiga colônia Romana de Oceana e a república idealista conhecida como Spensonia, fundada por um grupo de mais ingleses vítimas de naufrágio arrastados pelas ondas até esse lugar nos últimos anos do décimo oitavo século. Por fim, somente há poucas milhas marítimas, além de Spensonia, nós alcançamos outra ilha-república bem mais famosa, a aclamada ‘sociedade perfeita’ conhecida como Utopia, batizada pelo seu mais antigo regente, o Rei Utopos. Até sua lamentável decadência durante o final do século XVI e o início do século XVII, Utopia era reconhecida em todas as partes do mundo como o estado ideal que a humanidade poderia socialmente aspirar a ser um dia. Durante o começo do século XVI, Utopia foi governada pelo extraordinário gigante Gargantua, e foi, de fato, o local do nascimento do seu filho, de tamnaho bem similar, Pantagruel. As guerras com reinos vizinhos, no final do ano 1500, desestabilizaram Utopia de tal maneira que nesse período atual de nossa escrita (1931), o outrora perfeito país não passa da ruína lúgubre de uma ilha quase desabitada, com visitantes em potencial sendo desencorajados por um clima opressivo de melancolia que cerca os arrepiantes escombros derrotados de Utopia.

Passando pela Ilha do Macaco-Aranha, onde uma guerra entre duas tribos, em 1839, foi apaziguada por um doutor inglês visitante, a quem os nativos da ilha, desde então, têm se referido como “Rei Jong”, nós avançamos para o oeste, ao redor da Alta América do Sul, para alançarmos os mares das Índias Ocidentais. Aqui, encontramos a Ilha Venchurch com seus selvagens leões-marinhos carnívoros, e Fonseca, rodeada por uma névoa tão impenetrável que, frequentemente, achavam que a ilha se desvanecia magicamente. Aqui também fica a Ilha Oroonoko, onde o povo rubro-amarelo da ilha tratará algumas pessoas como mortas, caso elas não tenham aparecido para o jantar, e a Ilha de Ferdinand, livre de querelas, colonizada por escravos na metade do século XVIII. Contudo, muito mais interessante, são as duas ilhas separadas por, talvez, um quilômetro e meio de água e, no entanto, aparentemente, com cada uma se esquecendo da presença da outra. Uma é a ilha de Speranza, algumas vezes chamada de Ilha do Desespero, onde um tal de Rob Crusoé, até pouco tempo vivendo em York, passou muitos anos de solidão e sofrimento logo após o naufrágio do seu navio na região, durante os últimos dias de setembro de 1659. Ironicamente, a uma curta distância a nado de Speranza, situa-se uma ilha conhecida como Terraela, povoada por uma raça de adoráveis mulheres que geram suas filhas utilizando os métodos de partenogênese – o desenvolvimento do óvulo não fecundado, do qual resulta um indíviduo como os outros – e que, simplesmente, não vislumbram um homem desde o século IV d.C. Se, ao menos, o navegante encalhado tivesse adquirido alguma edição anterior desse Almanaque, seu isolamento poderia ter sido convenientemente aliviado (...)

O Brasil, todavia, é um reservatório para as maravilhas de procedência bem menos duvidosa. No seu litoral situado à sudoeste, logo após passarmos pela desventurada Nolândia, alcançamos Happiland, um território livre de discussões cívicas devido a um antigo monarca, que acabou impondo um limite sobre o montante de ouro que um rei poderia manter, legalmente, junto ao seu tesouro. Embora não seja, de forma alguma, um território opulento, Happiland tem durado mais tempo que a vizinha ilha república de Utopia, outrora sua superiora. Aglaura, ao norte de Happiland e a alguns quilômetros a oeste do Rio de Janeiro, quase parece ser, por qualquer razão, duas cidades ocupando o mesmo espaço. Uma é sem vida e descaracterizada, embora, de vez em quando, das suas ruas desbotadas seja possível ver de relance uma cidade diferente, rica em acepção, sendo que a importância dessa é, pesarosamente, inefável. Mais ao norte, junto à costa, chegamos a Watkinsland, com uma cidade abandonada no seu elevado platô e uma variedade rara de fauna, incluindo o desagradável hominídeo do tamanho de um homem e, geralmente, sobre dois pés, que tem sido citado como um ‘cão-rato’. Lemuel Gulliver, que estava ciente de Watkinsland, acreditava que esses cães-ratos fossem primos dos Yahoos, uma espécie igualmente nociva que ele havia encontrado na, não tão distante, ilha dos Houyhnhnms. Não muito longe de Watkinsland, a noroeste, fica Quivera, uma terra fértil em rubis que, inacreditavelmente, foi colonizada pelos galeses durante o ano de 1170.

No entanto, é o interior do Brasil que representa o centro de algumas das mais notáveis localidades da América do Sul. No profundo interior das florestas da Amazônia, por exemplo, supõe-se existir o remoto reino das selvas conhecido como Mu, bem provavelmente, o mesmo reino descrito pelo ilustre viajante do século XVIII, Cândido, e seu preceptor, o Dr. Pangloss, como a “Terra Fabulosa”. Em outras fontes de informações, Mu também é denominada como ‘Yu’ ou ‘Yu Atlanchi’, e é perto daqui que a mundialmente famosa ‘garota-pássaro’ Riolama, ou Rima, foi encontrada nos últimos anos do século XIX. A estátua de Riolama, feita por Jacob Epstein, encontra-se ao lado da versão , idealizada pelo mesmo artista, de Edward Hyde no antigo Serpentine Park, renomeado como Hyde Park, após os eventos do ano 1898.

O mais extraordinário dos lugares misteriosos do Brasil, que nós guardamos para o final, é a Terra do Bordo Branco, um platô localizado no estado do Amazonas, explorado, em 1912, pelo ocasional companheiro da Liga, George Challenger. Aqui, sobrevive um grande número de espécies que há muito tempo pensava-se estarem extintas, incluindo o tigre-dentes-de-sabre e muitos dinossauros. Uma raça de homens-macacos, compreensivelmente relacionada aos ‘cães-ratos’ ou aos Yahoos, outrora existiu no platô, antes de ser etnicamente expurgada por uma tribo indígena local chamada Accala, e alguns lugares próximos à Terra do Bordo Branco têm apresentado indícios de infestação por espécies que parecem ser pré-históricas na sua origem. A alguns poucos quilômetros descendo pelo rio Amazonas, a partir doplatô vulcânico, por exemplo, há um lago isolado conhecido pelas tribos indígenas da região como a Lagoa Negra, onde monstruosos anfíbios bípedes, aparentemente, têm sido avistados. Esses podem ser alguns, até esse momento, desconhecids atavismos siluriano, que vieram correnteza abaixo, da Terra do Bordo Branco, ou até poderiam ser treinadas vocalmente,encontradas na Ilha de Marsh, a grande distância no Pacífico.

11.1.10

Entrevista com Gerson Lodi-Ribeiro

Acabo de publicar no Overmundo uma conversa que tive com o escritor Gerson Lodi-Ribeiro, um dos inspiradores e homenageados na noveleta "Cidade Phantástica". Na entrevista, ele fala sobre uma das principais atrações do Ano do Vapor, a coletânea steamer que organizou com autores portugueses e brasileiros para a editora Draco. Abaixo, reproduzo este trecho e deixo o link para a leitura do material completo aqui.

Além de escritor você é também um editor e organizador de coletâneas memoráveis. Deve voltar a essa atividade ainda este ano, com uma antologia de textos inéditos chamada Vaporpunk. Poderia falar um pouco sobre esse trabalho, que também envolve HA, e sobre alguns outros projetos que, porventura, estejam em seus planos?

A Vaporpunk foi concebida como uma antologia steampunk luso-brasileira. Uma antologia de noveletas. Pois steampunk é um subgênero da H.A. e, se o conto é o formato da FC por excelência, a noveleta é o formato pelo qual a H.A. melhor se exprime. Para coordenar o trabalho editorial, mais duro à medida em que o editor decide atuar mais como editor de fato (intervindo de forma efetiva para melhorar os trabalhos submetidos), associei-me com um grande amigo, Luís Filipe Silva, que coincidentemente também é um dos maiores autores de ficção científica da língua portuguesa. Trabalhos e autores já estão praticamente fechados (conforme já divulgado pelo próprio entrevistador) e, se tudo correr conforme o planejado, a Vaporpunk sairá pela Draco este ano.

10.1.10

Novidade sobre os selos do Ano do Vapor

Mad Hatter, do blog Paradoxos, facilitou a vida de quem deseja aderir à corrente do Ano do Vapor e passar a usar os selos em suas páginas pessoais. Ele que é, segundo suas próprias palavras, "programador alucinado, escritor nas horas vagas e blogueiro por falta de grana para terapia" deixou à disposição dos interessados o código para adicionar com mais facilidade esses elementos em blogs e sites. Além disso, ele deu um acabamento especial, simulando picotes de selos de verdade.

Abaixo, instalei o código que faz alterar a figura entre os selos já criados até o momento.




2010 o Ano do Vapor

Torre de Vigia 13

O steampunk feito no Brasil volta a repercutir em Portugal. O blog Rascunhos de Cristina Alves anunciou novidades futuras de nossa terra, citando informações lidas por aqui, em seu post Expectativas literárias 2010, do dia 4 de janeiro.

No Brasil podemos esperar pela colectânea Vaporpunk, organizada por Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva, com contos enquadrados no género Steampunk de autores brasileiros e portugueses. No blog Cidade Phantástica podem ler mais detalhes sobre o livro. Para além da colectânea, deverá ser lançado um outro livro de Steampunk pela Draco, da autoria de José Roberto Vieira, O Baronato de Shoah.

9.1.10

Thought-time

Um ator que vive simultaneamente, em duas franquias cinematográficas de sucesso, personagens cínicos e canalhas: um deles cercado de tecnologia avançada e outro um aventureiro do passado nem tão distante. Estou falando de Harrison Ford que deu vida na década de 80 tanto a Han Solo, o contrabandista de Star Wars, quanto a Indiana Jones, o arqueólogo da série com seu nome. Mas daqui a algum tempo, essa frase pode ser verdadeira também ao se falar de Robert Downey Jr., que já vai para o segundo filme do super-herói hi-tech, beberrão e mulherengo de Homem de Ferro e que acaba de interpretar um detetive vitoriano, excêntrico e misógino em Sherlock Holmes. Se tudo der certo, como merece a obra, este último também vai virar franquia de sucesso e seu intérprete será o Harrison Ford desta nova década. E ele merece, ainda mais que a obra.

Quando anunciaram pela primeira vez esta nova adaptação do personagem de sir Arthur Conan Doyle  (1859-1930) não foram poucos o que acharam que estava tudo invertido. O atarracado Downey Jr. como Holmes e o galã Jude Law como Watson? Não seria o contrário, não? A intenção do diretor Guy Ritchie parecia ser essa mesma, a de subverter o mito, sair da tal zona de conforto e oferecer às novas gerações uma nova versão de um ícone. Paradoxal, a versão iconoclasta de um ícone. E deu certo. O protagonista entrega isso mesmo, um personagem que vive uma atmosfera de decadência, mas no sentido mais amplo do termo, pois vale lembrar que decadência é aquilo que se segue ao auge. Sherlock Holmes está no ápice de suas capacidades dedutivas e isso não é nada promissor em termos de futuro. O que se pode querer depois de se ter alcançado o máximo?

É este momento de crise o visto no recorte do filme, agravada ainda mais pela iminência do fim da parceria dos moradores do 221b de Baker Street. John Watson, médico e veterano de guerra, vai se casar o que acentua ainda mais o temperamento exótico de Holmes. Downey Jr. é certeiro ao dar esse ar de desesperada arrogância ao personagem. Se não fossem os novos chamados à ação que obrigam a dupla a continuar junta em mais um caso, a autodestruição do investigador do século XIX seria tão certa quanto a dos astros pop de nossos dias após terem conquistado tudo o que poderiam extrair de seu talento.

Mas para o bem da sanidade do detetive, e  o azar de Londres, ação não falta nos 128 minutos de filme. A história envolve conspirações, magia negra, ciência e tecnologia em uma mistura steampunk das melhores que o cinema já proporcionou. A trama é bastante intricada e confia no público ao evitar apresentações muito didáticas de seus personagens. Não se perde tempo explicando quem são Holmes e Watson, como eles se conheceram ou como travaram o primeiro contato com figuras como a antogonista, rival e algo mais do detetive Irene Adler (interpretada por Rachel McAdams). O texto oferece os detalhes básicos e convida a plateia a conhecer mais a partir do material que deu origem àquele universo. A noiva de Watson, por exemplo, faz referência a histórias de investigação que teria lido, citando explicitamente Edgar Allan Poe, e, em certo momento, esbarra no baú onde seu futuro marido guarda as anotações das dezenas de casos nos quais acompanhou as deduções do antigo colega.

Como cinema, Ritchie exibe suas características marcantes de obras anteriores, como Jogos, trapaças e dois canos fumegantes (1998) e Snatch - Porcos e diamantes (2000). A estilização da violência e os maneirismos visuais não agradam a todos, mas têm público cativo. Esse mundo não iria colidir com aquele criado por Conan Doyle sem soltar faíscas. Os mais puristas deverão estranhar muito; as vertentes acostumadas com as recriações da cultura steamer, por outro lado, talvez se sintam em casa. Para este segundo grupo, além das tecnologias deliciosamente retrofuturistas, o diretor ainda oferece um interessante olhar cinematográfico para os poderes de racionalização do grande detetive. Antes de partir para a violência explícita - seja agindo em campo ou numa luta de boxe movida a apostas - Holmes coreografa mentalmente cada golpe que vai dar, antecipando ações e reações. Se Matrix apresentou o já desgastado efeito do bullet-time, Sherlock Holmes surge com seu thought-time. É uma maneira de entrarmos na mente dessa genial criação vitoriana. O perigo é não conseguirmos sair mais de lá.

Ano do Vapor, o selo 4


E mais uma versão visual para o Ano do Vapor. Este selo é de autoria de Alexandre Lancaster Soares. Comentários, sugestões, já sabem, aqui e no Twitter.

8.1.10

Ano do Vapor, o selo 3

Muito empolgante a fervura do Ano do Vapor! Recebi mais uma sugestão de selo, este de autoria de Hugo Vera. O espaço de comentários e o Twitter estão abertos para as críticas e sugestões.

Ano do Vapor, o selo 2

Nova versão, agora com formato realmente de selo. O que acha o distinto público? Lembrando que este selo é de autoria de Matheus Quinan.

Gotham à meia luz

Um clássico dos quadrinhos steampunk acaba de voltar às bancas brasileiras, vinte anos após seu lançamento original. Gotham by Gaslight – ou como ficou conhecida na encarnação nacional, primeiramente pela editora Abril, em 1990, mantida agora pela Panini, Gotham City 1889 – é a melhor oportunidade de se ver Batman e sua cidade natal em versões vitorianas. Este foi o álbum que inaugurou o selo Elseworlds da DC Comics, através do qual a editora transfere seus mais consagrados personagens para cenários alternativos, sejam eles históricos ou retirados de outras obras ficcionais. Em ocasiões anteriores, resenhei dois títulos desse projeto, conhecido como Túnel do Tempo por aqui, nos quais o Homem-Morcego e Super-Homem viviam aventuras durante o período da Guerra Civil americana (1861-1865). Agora, como parte das comemorações do septuagenário de Batman, que já comentei em outro blog, a Panini lança um encadernado reunindo esta versão à luz de gás e uma outra, ambientada na década de 60, chamada Pulp Fiction, numa única edição.



Mas o assunto aqui é steampunk, vamos deixar o morcego sessentista de lado e nos focar no que interessa. Até porque, neste álbum inaugural, mais do que em qualquer outro lançado por aquele selo, tudo conspirou tão favoravelmente para seu sucesso que não devem ter sido poucos os leitores a preferir aquela ambientação alternativa à oficial. A trama em si é muito simples, bem mais do que se poderia esperar de uma história de investigação. A bem da verdade, Brian Augustyn não nos oferece exatamente um desafio se formos encarar sua história como um exemplar de whodunit – aquele estilo consagrado por Agatha Christie (1890-1976) –, mas ele conduz bem a narrativa para garantir surpresas até o final, se não quanto ao “quem fez”, pelo menos ao “por que fez”. E olhe que o sujeito por trás do tal quem é ninguém menos que o serial killer mais célebre de todos os tempos, o mito que praticamente define o termo no imaginário popular: Jack, o Estripador. Passada sua temporada de assassinatos impunes na Inglaterra, o maníaco ataca em outro local, ao cruzar o Atlântico em direção à América. A partir de julho de 1889, ele começa a dividir as manchetes dos jornais Gotham City Gazette e The Gotham Guardiam com uma estranha aparição que se veste com máscara, capa e um enorme morcego desenhado no peito.

Nós, os leitores da HQ, sabemos que são duas criaturas noturnas distintas, o assassino que apunhala prostitutas nas ruas mal-iluminadas e o vigilante que patrulha a cidade do topo dos prédios. Porém, para os leitores dos jornais, para os repórteres, para a polícia, para a população assustada não é nada fácil fazer tal distinção. Com isso, não demora nem três meses para as autoridades prenderem a pessoa errada; o homem que, de dentro de uma cela no Asilo Arkham, deve tentar se sair bem onde duas forças policiais falharam anteriormente. A corrida é contra o tempo, pois a sentença foi dada e o enforcamento de Bruce Wayne já está marcado.

Contudo, se o roteiro é mesmo tão simples – apesar de guardar detalhes saborosos para quem conhece a mitologia do personagem criado por Bob Kane, como a discreta versão para um suposto Coringa e o ainda mais discreto Harvey Dent – o grande trunfo desta graphic novel é mesmo sua parte visual. Gotham by Gaslight foi o cartão de visitas definitivo para um grande artista dos quadrinhos, um esteta da narrativa gráfica como poucos, Mike Mignola. Então aos 26 anos, este californiano havia surgido para os quadrinhos no início daquela década na concorrente da DC, a Marvel, por onde publicou trabalhos nas revistas do Demolidor e da Tropa Alfa. Nada que merecesse chamar muita atenção. Foi mesmo na casa das duas letras que saíram suas primeiras obras com a marca autoral. Ano antes de sua empreitada vitoriana, o rapaz desenhou uma minissérie em quatro capítulos chamada Odisséia Cósmica. Batman fazia uma ponta, mas a saga era estrelada pelos personagens que Jack Kirby (1917-1994) criara para aquela editora décadas antes.

Talvez influenciado por essa lenda dos quadrinhos, Mignola começou a adotar ali as características que seriam aprimoradas no álbum de estreia do selo Elseworlds. O desenhista comum de meados dos anos 80, deu origem, no final daquela década, a um artista com traço marcante, sólido, conciso, minimalista. Tão minimalista que imaginar um painel seu subtraído de uma única linha é imaginar um desenho incompleto. Não sobra nada, não há gordura para se queimar. Se o estilo começou a aparecer em Odisséia Cósmica, foi em Gotham by Gaslight que ele ganhou definitvamente crítica e púbico, passando a se desenvolver ainda mais na criação do personagem a que tem se dedicado nos últimos anos, Hellboy (que já foi levado ao cinema por duas vezes, sendo a última delas em um filme com tratamento bastante inspirado na estética steampunk). Hoje, a arte de Mignola dispensa assinatura, um leitor habitual do gênero reconhece sua composição sóbria, a estilizacão dos personagens, a arquitetura urbana bem delineada, o traço firme e sem meios tons que cria uma atmosfera entre o suspense e o horror seja lá onde ela aparecer. Tanto que foi usada até para apresentar ao mercado internacional o fumetto Dylan Dog, ilustrando capas de álbuns que foram publicadas no Brasil, pela Conrad. Seria fácil dizer que seu estilo é único e inimitável, mas a verdade é que desde a primeira vez que o percebi, passada aquela fase nada chamativa de Tropa Alfa, eu o comparo com um quadrinista nacional, mas isso fica para uma próxima resenha.

Todas essas informações visuais aparecem naquele álbum desde sua capa passando por cada um dos quadros de suas pouco mais de 50 páginas. Bruce Wayne, Batman e sua cidade gótica estão tão à vontade naquele contexto do século XIX que é de se duvidar mesmo se o melhor para eles não seria manter a ambientação de época, dispensando o período contemporâneo. Raras vezes as versões que passaram a ser apresentadas então regularmente dele e de outros heróis no selo Elseworlds mostraram uma combinação tão adequada ao espírito do tempo retratado. O Nosferatu, como ele chega a ser chamado em uma festa de alta sociedade em certo momento, parece mesmo ter surgido para viver no oitocentos.



A arte climática de Mike Mignola ganhou um reforço formidável com a finalização de P. Craig Russel e, principalmente, com a paleta de cores de David Hornung. Basta voltarmos a comparação àquela minissérie que antecedeu este álbum, a Odisséia Cósmica, com suas cores primárias e berrantes, para constatar o quanto os tons frios e soturnos caem melhor àquele estilo econômico de desenho. A história já abre com duas páginas de um cinza-azulado emulando um sonho – que Bruce Wayne, completando seus anos de treinamento, narra ainda em Viena para um dos seus mestres, Sigmund Freud (1856-1939), ainda jovem, degustando seus indefectíveis charutos. Bem mais à frente, quando surge a necessidade de se usar o recurso do flashback, as cores se aproximam do sépia, amarronzadas, amareladas como uma memória esvanecida. A rigor, uma cor quente só é utilizada com destaque para demarcar certo momento dramático: o vermelho vivo que pinta o quadrinho no qual uma pistola é disparada em um ponto crucial da história. Para evitar exageros, em tão contida HQ, o painel dispensa onomatopéias.

Um trabalho de sutilezas que faz o clássico. Mesmo o título original, dispensado no Brasil em todas as oportunidades nas quais a obra ganhou tradução local, evoca muito usando pouco. Gaslight diz mais sobre aquele álbum que apenas a forma de iluminação adotada pela nascente metrópole de Gotham City de 1889. O termo se refere a uma vertente literária pertencente às origens da cultura steampunk. Vale citar um artigo do Conselho Steampunk, de sua série “Seguindo a trilha do vapor”, no qual o confrade Karl analisou o estilo:

Falando sobre variedades do fantástico (puxando assunto através da última frase de um artigo anterior, que descarado heim Karl!), outro elemento, antes uma categoria separada, mas hoje incorporada na vertente steampunk, são os chamados Gaslight Romances (literalmente traduzindo: Romances à Luz de Gás. Sim, eu sei, é estranho…), histórias que se ambientam em uma versão romantizada, enevoada (quero dizer, bem mais enevoada), da Londres do século XIX, mas com enfoque em vários nostálgicos ícones do fim desse século e do início do século XX. Uma combinação de ficção sobrenatural, romance policial, e fantasia histórica, colocando em um mesmo cenário figuras como Jack o Estripador, Sherlock Holmes, Dr. Jekyll & Sr. Hyde, Auguste Dupin, Dracula (o do livro, não o de verdade), Hercule Poirot, Erik O Fantasma da Ópera, Miss Marple, e até mesmo Tarzan.

Com exceção de alguns trabalhos franceses, essa categorização não é mais usada, mas seus elementos passaram a fazer parte do gênero steampunk sem distinções, o que convenhamos, é mais prático do que ficar sub-categorizando cada elemento, e depois sub-categorizar a sub-categoria, e assim por diante.

Tanto concordo que acho possível classificar este álbum como sendo steampunk, mesmo não havendo nenhuma tecnologia retrofuturista nele – o toque anacrônico surge apenas no deslocamento do protagonista, criado originalmente nos anos 30 do século XX para viver uma aventura como se fosse um nativo do XIX. Contudo, é preciso lembrar, que essa história ganhou uma continuação direta, também do selo Elseworlds, dois anos depois de sua publicação. Batman: Master of the future é, ela sim, uma obra steamer de fato, ao mesmo tempo que é, infelizmente, bem inferior ao trabalho pioneiro. Novamente no roteiro, Brian Augustyn faz o alter ego de Bruce Wayne enfrentar nos céus de Gotham – agora bem mais ensolarada – um pastiche de Robur, o Nemo dos céus, criação de Jules Verne (1828-1905). Jamais vou entender o porquê de ele não ter usado o personagem original, já em domínio público àquela altura... Francês como Verne, Alexandre LeRoi é um curioso caso de extremismo ludita: ele ataca Gotham por criticar o apego das pessoas à tecnologia e usa para isso um dirigível e um robô altamente tecnológicos. Os desenhos ficaram a cargo de Eduardo Barreto, artista competente mas que não é Mike Mignola. Nem é de se estranhar muito que a Panini tenha optado por outra história que não essa para elaborar o encadernado recém-lançado. Mas nos Estados Unidos, Gotham by Gaslight e Batman: Master of the future foram compiladas em uma edição com o título Batman: Gotham by Gaslight.


Além dessa sequela, a graphic novel voltou a ser citada pela DC Comics em 2007, desta vez na cronologia oficial da editora, durante os eventos de uma de suas sagas periódicas envolvendo vários personagens. Foi em Countdown - Contagem Regressiva, no Brasil - em que aquele mundo vitoriano acabou sendo absorvido pela continuidade geral da companhia, recebendo a alcunha de Terra-19. Fica a curiosidade de se saber que a história em questão foi, novamente, uma volta de Augustyn à sua mais famosa criação, desta vez ilustrada por um brasileiro, Greg Tocchini. De modo geral, Countdown foi um justo fracasso de crítica e de público, abrindo uma crise criativa na DC, e essa HQ em particular não é digna de nota. Uma inspiração bem mais interessante surgiu de forma não-oficial e também foi pauta de matéria do Conselho Steampunk: baseado naquela versão anacrônica de Batman, o escultor conhecido como Sillof criou a Justice League by Gaslight, uma série de brinquedos articulados – as action figures – personalizados por ele . Ver suas recriações steampunk para Super-Homem, Mulher Maravilha & cia. (senti a falta do Coringa, ali) ajuda a entender onde foi parar a criatividade que tanto faltou a Brian Augustyn ao tratar daquele pequeno clássico que criou, vinte anos atrás, em parceria com Mike Mignola.