Por Eric Novello
Quando a noite dominou o horizonte, o povo ainda tomava as ruas da cidade, curioso para ver o desfile de espólios da mais recente batalha do exército romano contra o flagelo de Zeus. O vento soprava seco como se o sol ainda estivesse a pino, espalhando a fuligem que escapava dos lança-chamas e pintando com seu negrume a pele daqueles que se amontoavam nos limites do isolamento imposto pela guarda palaciana.
Licínio tentava se movimentar em meio à multidão, com um olho em seu chefe Ítalo Tarnapo e o outro em um carro que aguardava com ansiedade, para ele deveras especial. Percebeu que Ítalo se aproximava pelos urros ensurdecedores que tomaram a avenida. Gritavam como se fossem eles os soldados que arriscavam a vida no campo de batalha, eles os feridos pelos escudos eletrificados dos espartanos. De nada adiantou argumentar com o guarda e pedir passagem. Se fosse ele em seu lugar, também não acreditaria que um garoto magrelo tinha sido escolhido pelo general das tropas romanas para servi-lo em treinamento.
Como era de se esperar, Ítalo havia dispensado a toga do traje cerimonial e vinha em sua armadura. Não fazia o tipo que seguia os ritos e vivia uma relação conturbada com os deuses, como se tivesse a necessidade de dizer em atos que o mérito pelas conquistas era dele e não das divindades. A cada nova explosão de fogo, era possível ver as marcas nas escamas metálicas presas sobre a sua roupa de couro negro, e quando as chamas cessavam, brilhava a águia romana em seu peito, num intenso tom de dourado. As botas reforçadas estavam surradas, porém inteiras, encaixando perfeitamente na peça sobre as canelas. Ítalo havia desmontado a parte dos membros superiores para expor o corte adquirido do lado esquerdo. Lembrava ao povo com aquele gesto que era um guerreiro de carne e osso, sem nenhum implante, nenhuma peça metálica entranhada em seu corpo.
Ítalo esperou que o desfile fizesse a última parada e retirou o elmo dourado que simulava o bico curvo de um falcão. Os cabelos castanhos estavam úmidos de suor, e os olhos ardidos pela mistura deste com a fuligem que se espalhava. Uma nova onda de urros e brados se seguiu, mas seu ânimo começava a ceder ao cansaço. Tinha em mente os homens mortos na batalha, as mulheres a quem daria a notícia de morte, e não a coroa de louros que César pousaria em sua cabeça. Achou que havia enlouquecido ao ver Licínio passar por entre as pernas dos guardas e correr no meio do desfile para o carro logo atrás do seu.
O jovem parou em frente às grades, sem conter o entusiasmo de ver pela primeira vez de perto uma quimera alada. Parecia sedada, com o corpo caído sobre uma das asas coriáceas, agora murchas e sem brilho. Licínio arriscou tocar a cabeça de leão, mas se assustou quando a cauda de serpente moveu-se em sua direção. Um guarda tentou alcançá-lo, mas Ítalo sinalizou que o deixassem em paz e assim foi feito. Licínio sacou sua pequena adaga, cortou um tufo da juba e guardou-o no estojo em sua cintura. Logo que os carros voltaram a se mover, acompanhou a quimera por mais uns instantes, depois se misturou novamente à multidão, guardando a lembrança como a um tesouro.
O campo próximo ao templo de Marte estava ocupado pelos soldados que Ítalo comandara na missão. A maioria deles ostentava modificações metálicas, braços reforçados pelo ferro e aço, pernas capazes de guardar uma pequena arma em seu interior. Ítalo não os culpava, era difícil resistir aos caprichos da ciência trazida pelos deuses e tida como um símbolo de superioridade diante dos adversários. Ele estava entre os poucos que ousavam resistir aos inventos inspirados por Vulcano.
Roma se vangloriava de ser a cidade escolhida pelos deuses para levar a luz até os povos primitivos. Havia sido construída com a força dos homens e das máquinas sobre um terreno consagrado em rituais tão antigos quanto o próprio conceito de civilização. Era cantada aos quatro ventos como a maior e mais poderosa cidade de ferro já erguida sobre a terra, cuja glória irradiava sobre o território cada vez mais vasto controlado pelo ditador.
O festejo precisava ser digno de Roma e assim Júlio César o fez, ordenando aos seus edis que colocassem as fornalhas no máximo e oferecessem um espetáculo flamejante. Meticuloso, fez questão de vistoriar o templo e escolher o sacerdote que conduziria os ritos, seu antigo amigo Metellus, um homem de mãos metálicas recurvadas como garras e olhos biônicos financiados pelo próprio imperador.
A cerimônia no templo devia ser o momento mais importante, com Ítalo Tarmapo sendo recebido pelos togas-negras e pela guarda de elite na base da escadaria. Com alguma sorte, o próprio Marte apareceria para agraciar seu pupilo, mas César sabia que era querer demais convencer os deuses de se misturarem aos homens por motivos que não os seus caprichos. Se nem Ítalo fazia questão de esconder o tédio em seu retorno, o que dizer de um deus que só se sente vivo no calor da guerra, pisando no corpo do inimigo. A resistência de Ítalo aos implantes tornava-o um de seus preferidos, o ditador sabia disso, por isso mantinha a ínfima esperança viva no peito reconstruído sob a armadura.
Os escoriados espartanos tinham muito que agradecer a Zeus. Geralmente alvo de pedras e objetos, passavam como um mero detalhe entre o carro da quimera e dos desmortos. A última jaula do desfile trazia cinco das estranhas criaturas que vinham interferindo nas batalhas, atacando os soldados em regiões de mata densa. Pareciam homens cadavéricos, criaturas com uma força que não condizia com a aparente fragilidade. No momento do ataque, agiam de forma organizada e inteligente, movendo-se com agilidade na certeza de seus golpes. Mas depois de capturadas, não passavam de cascas vazias, como se a consciência as abandonasse de repente. Matá-los em eu estado de inércia era considerado sinal de mau augúrio pelos soldados, por isso eles o traziam para a cidade, largando-o nas mãos dos sacerdotes, para que fossem jogados nas fornalhas num ritual de neutralização.
Ítalo Tarnapo desceu do carro e caminhou em direção a Júlio Cesar, alcançando o palanque metálico. O fascínio que exerciam sobre o povo era incontestável. O ditador se aproximou da borda e silenciou a multidão com um único gesto, era hora de seu discurso. Mergulhou as mãos numa fenda e sentiu os conectores cravarem em seu pulso, ligando-o à cidade. Ele era Roma, seu corpo, sua alma. Podia sentir cada parte da cidade pulsando, a energia que emanava do público extasiado. Sua voz ecoou como um trovão. De onde estava, Ítalo viu o brilho azulado dos olhos de Metellus e precisou controlar a raiva que lhe queimava o estômago. Não confiava no sacerdote, um abutre traiçoeiro que um dia teria o prazer de depenar com a ponta da espada. Por agora, seguiria com o teatro de poder que tanto valia ao império. Não estava ali por César nem por Marte, mas pelos homens e mulheres que os observavam curiosos. Era por eles que iria até o fim, por eles tentava silenciar no fundo de sua mente o chamado que fingia ignorar. Um eco numa língua que não era a sua, mas que sabia de onde vinha, sabia o que anunciava. Em algum momento de sua vida, pararia para ouvir a voz de Anúbis, mas, por enquanto, preferia se manter distante, um guerreiro, puro, sem fios e engrenagens, fiel aos seus ideais.
7 comentários:
Excelente texto! Gostei do cenário e esse gancho no final me deixou muito curioso para conhecer o resto da ambientação.
Curiosidade aqui também, Galvão, E acho ótimo ver projetos para além do Ano do Vapor ;-)
Gostei bastante do conto, é interessante ver Roma por um ponto de vista tão moderno e meio ficção cientifica.Gostei, quero o resto, beijos mordidos!
Uau!
Agora eu quero um conto no coliseu!
e não vou parar de encher até ler um
Bem-vinda, Nazarethe, também quero ver mais.
Bem-vindo, também, Zé. O Coliseu seria um cenário perfeito para cybergladiadores.
Muito bom! O bom texto misturado à estética criativa teve um resultado magnífico.
E tenho que concordar: o Coliseu aí, hein?
Abraço!
Posso dizer que um cyberColiseu daria uma ótima capa, além de cenário ;-)
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