10.8.11

Comic strip

Florianópolis já foi chamada, com muita justiça, de túmulo do cinema pela Folha de S. Paulo, não apenas pela baixíssima produção local de filmes, mas também pela ausência de boas salas de projeção na cidade. Principalmente as que se dediquem a exibir obras fora do grande circuito comercial de lançamentos. A situação estava ainda mais crítica nos últimos muitos meses, com as reformas inacabáveis do Centro Integrado de Cultura e com o fechamento do Cine York, na cidade ao lado, onde eu moro, São José. Felizmente as coisas começaram a melhorar com a volta de um espaço cinematográfico no shopping mais tradicional da capital catarinense, o Beiramar, ainda mais porque o empreendimento do CinEspaço, da rede Espaço Unibanco, garante presença permanente de salas dedicadas aos tais filmes cult. Caso da produção que estreia nesta sexta-feira, Gainsbourg – o homem que amava as mulheres, cinebiografia do músico popstar francês dos anos 60, e baseado em uma graphic novel escrita e ilustrada pelo mesmo artista que dirige e roteiriza filme, Joann Sfarr. Lançado internacionalmente ano passado, o longa só chega por aqui agora, quando se relembra os vinte anos da morte do homenageado, por conta deste novo empreendimento, do contrário, seria algo a se ver apenas na tela pequena da TV ou do computador.

Ser um filme de quadrinista deixa marcas bem visíveis na obra, a começar bela ótima animação que abre a película, quando Serge Gainsbourg (1928-1991) ainda era Lucien Ginzburg, uma criança judia vivendo numa França ocupada pelos nazistas, dividido entre o interesse pela pintura e pela música. Desde então, a escolha do diretor e roteirista foi fazer o garoto ser acompanhado por uma espécie de alter ego, amigo invisível, consciência falante. Em uma mistura de efeitos mecânicos e digitais (ou numériques, como preferem os gauleses), tal ser assume a forma de uma caricatura dele próprio, com as orelhas de abano e o grande nariz ainda mais proeminentes que os nada modestos atributos físicos do cantor (e também do ótimo ator que o interpreta, Eric Elmosnino, justamente premiado com o César por este trabalho). Uma forma inteligente que o quadrinista e cineasta encontrou de ser fiel às mentiras de seu ídolo (objetivo declarado ao final do filme) e que dá um ar ao mesmo tempo cartunesco e fabuloso à sua recriação. Não pude deixar de pensar no truque semelhante levado ao cinema por Spike Jonze ao adaptar o livro infantil de Maurice Sendak em Onde vivem os monstros. Como naquele filme de 2009, o "monstro" filmado por Sfarr revela sentimentos e emoções que seriam invisíveis para a câmera de outro modo. São os balões de pensamento de uma história em quadrinhos ganhando vida própria em grande e inusitado estilo.

Para leitores de quadrinhos da minha geração, Gainsbourg – o homem que amava as mulheres também pode trazer a lembrança outros exemplos da nona arte. Já que comecei o texto falando na Folha, quem conhece Angeli apenas pelas tirinhas e charges do jornal deixou de acompanhar seu projeto mais autoral: a revista Chiclete com Banana, dos anos 80, quando o quadrinista era influenciado em igual medida por Gainsbourg e pelo cartunista americano Robert Crumb. O filme-quadrinístico de Joann Sfarr com sua atmosfera de clubes de jazz, boemia francesa, mulheres lindíssimas, pequenas contravenções é uma transposição de tudo o que eu gostava daquela revista brasileira e de seu suplemento anárquico JAM. Prova de que a influência de Serge é tamanha a ponto de marcar tanto seu compatriota quanto aquele paulistano em mídias tão diferentes da música e entre si quanto os quadrinhos e o cinema.

Outro momento memorável do filme remete às HQs, quando o protagonista se sai bem em uma das várias conquistas que justificam o subtítulo cafajeste nacional (o original é vie héroïque, ou seja, um ufanista "vida heróica"). Apesar de sua feiúra incontestável, o homem realmente amava mulheres, e que mulheres! Brigitte Bardot entre elas, a eterna musa francesa. Em homenagem a ela, nosso herói a imaginou como uma protagonista das tiras de quadrinhos quando compôs a onomatopéica música que empresta nome a esta resenha (Viens petite fille dans mon comic strip/ Viens faire des bull's, viens faire des WIP !/Des CLIP ! CRAP ! des BANG ! des VLOP ! et/des ZIP !/SHEBAM ! POW ! BLOP ! WIZZ !), situação que rendeu uma das sequências mais divertidas daquele excelente filme, com a impecável Letitia Casta se saindo muito bem vivendo na tela o mito BB. Tão bem, tão hipnoticamente bem, que acaba ofuscando um tanto as demais aventuras amorosas presentes na película - como Jane Birkin e Juliette Grecco. Mas o filme conta com grandes cenas do início ao fim, seja com o jovem Lucien testando seus dotes de sedução para convencer modelos bem mais velhas a posarem nuas para ele ou com o já veterano Serge ainda provocador fazendo uma polêmica versão reggae para "Le Marsellaise".


8 comentários:

Nikelen Witter disse...

Fiquei louca para ver o filme, mas se Florianópolis que é uma capital é o túmulo do cinema, o que resta para a minha aldeia?
Estive no túmulo de Serge Gainsbourg em Paris. O povo de lá lhe faz uma homenagem interessante: deixam tickets de metrô junto com flores sobre a lápide. Nunca cheguei a descobrir o total sentido disso.
Uma pergunta: existe uma versão francesa de Barbarella? Eu só conheço a americana com a Jane Fonda.
Abraço

Romeu Martins disse...

Hmmm, uma das primeiras músicas dele,de composição própria, cantada por artistas boêmios antes da fama, era justamente a história de um sujeito que vendia bilhetes do metrô,era visto por todo mundo, mas ainda continuava sendo um anônimo... deve ser daí essa homenagem, que eu não conhecia!

Barbarella foi uma viagem minha, Nikelen! Isso que dá escrever ainda pilhado com o trabalho hehehe Confundi as musas BB e Jane Fonda, obrigadão!

Romeu Martins disse...

A música sobre o bilheteiro do metrô de Paris é esta: http://letras.terra.com.br/serge-gainsbourg/15662/ "le poinçonneur des Lilas"

Nikelen Witter disse...

Eu não conhecia essa canção dele. Melodia que pega na cabeça, imagino o sucesso na época. E, realmente, os tickets colocados lá são os lilases (e existe de outras cores). Então, a referência é esta mesma.
Quanto a Barbarella, vc é que me deixou confusa, hihi. Já fiquei pensando no quanto a versão francesa poderia ser mais doida que a americana. Se bem que o diretor era francês e foi marido das duas musas (amava BB e odiava a JF). Talvez daí vc as ter misturado. Bjs
P.S.: Obrigada pelo link da música;

Romeu Martins disse...

Pois é, fiz um mashup de musas na hora de escrever a resenha hehee Matamos a charada da homenagem dos tickets, então!

Anita Dutra disse...

Bela resenha, Romeu. Várias sacadas de que eu não fazia ideia e que me fizeram ter vontade de ver o filme pela, er, sexta vez. Pois é, tiete é f*. Valeu lembrar dos "outros" monstrinhos também (ah, pecado, o Serge não era bonito, fato, mas tinha charme pra mais de metro, aquele um... rs). Mas ó, não cahama a Birkin de aventura, não, que ela foi a única mulher de verdade Dele. Assim entendo, pelo menos. Jane B. merecia um filme sobre ela também... Pra mim, teria caldeirões e vassouras voadoras, mais ou menos por aí:

http://postarestante.wordpress.com/2011/04/23/jane-b-ou-mitos/

Romeu Martins disse...

Haha, olá minha querida jornalista tatuada ;-) tão tiete que escreve Dele com maiúscula 0.o Não se contenha e complete a primeira meia-dúzia de "visualizações" do filme. Ah, e eu fiquei muito curioso em ler a BD (HQ em francês, sou chique às vezes) em que o filme se baseou, se você encontrá-la, me diga o que achou ;-)

Leonardo Peixoto disse...

Sinto muito pelo estado do cinema em Florianópolis :(