25.11.10

Infiltração de vapor

Antes de mais nada, devo dizer que já estava querendo ler e resenhar esta coletânea desde que anunciei por aqui que haveria pelo menos um texto steampunk nela . Isso só não havia sido feito ainda porque a Saraiva, rede na qual encomendei o livro muitos meses atrás, vinha sem grandes justificativas adiando a data da entrega, até que minha paciência se esgotou e eles perderam de vez um cliente. Felizmente, o editor e organizador da obra, Erick Santos, acabou resolvendo o impasse, enviando-me um exemplar do terceiro volume da coleção de antologias mistas e sem temática fixa da Editora Draco: a Imaginários. Mesmo já sabendo do fato pelas resenhas que li, foi muito interessante encontrar não apenas uma, mas três histórias retrofuturistas naquelas páginas, exatamente 30% dos dez contos da publicação.

Outra coisa que quero dizer antes de comentar sobre esses textos é o quanto acho positivo que o steampunk e derivados se infiltrem dessa forma em obras que, à primeira vista, não são destinadas apenas aos entusiastas do subgênero. Mesmo com duas coletâneas steamers já lançadas e alguns romances anunciados (fora uma novidade que espero poder contar em breve), acredito que a presença do retrofuturismo em tomos mistos é um sintoma muito mais claro da aceitação dessa forma de contar ficção científica no país. Seria na prática um processo de naturalização do tema por parte dos escritores, leitores e editores, que passam a encarar o futuro do passado em pé de igualdade com o cyberpunk, a space opera, a fantasia histórica, o terror psicológico, para citar temáticas exploradas neste mesmo livro. Mas chega de nariz de cera e vamos falar da trinca de contos que são o foco deste blog.



O primeiro deles é justamente o que havia sido anunciado naquele post que citei antes, “Bonifrate”, do escritor e quadrinista Douglas MCT. Mesmo tendo sido antecipado neste blog e em outras resenhas que li, não deixou de ser uma surpresa. O próprio autor deixou registrado por aqui que buscaria a estranheza e inspiração em Watchmen e em Matrix para fazer uma espécie de releitura de Pinóquio. O resultado me lembrou bastante uma outra obra, mais recente, mais ligada ao gênero e que foi comentada em postagem anterior: Whitechapel Gods, de S. M. Peters. Há muito do romance daquele canadense neste conto do brasileiro, mesmo que as coincidências sejam apenas isso, coincidências. Reconheci bastante dos mecanizados Boiler Men nos dilemas do protagonista da história de Douglas, e algo do Grandfather Clock na passagem final. O conto é muito interessante, uma narrativa steampunk inusitada, contada de um modo como poucas vezes eu havia visto ser feito em português.

Já que falei em Whitechapel Gods, o conto seguinte é do escritor e advogado que justamente me presenteou com aquele livro (que ainda vai ser resenhado por aqui). Marcelo Galvão escreveu o único texto que eu já havia lido antes de ter em mãos o Imaginários 3: “Vida e morte do último astro pornô da Terra”. Aliás, mais do que ler, votei nele quando este conto concorreu em um concurso literário promovido na maior comunidade em português dedicada à FC do orkut, ocasião em que o autor concorreu com o pseudônimo XXX.  Então, me sinto à vontade para elogiar esse conto e afirmar que, se fosse o caso, levaria meu voto novamente como o melhor do livro. A ideia é a de que, nos anos 70, no auge da popularidade do mercado de cinema pornográfico, robôs inventados no Japão passaram a substituir com muitas vantagens os atores humanos em tais produções, o que leva a crise enfrentada, já na década seguinte, por nosso herói, Nick Dick. Uma excelente mistura de boa trama, ação de primeira, diálogos inspirados e especulação histórica, este conto poderia ser classificado como um exemplar de transistorpunk, conforme artigo que traduzi e comentei por aqui

O conto que fecha a trinca de retrofuturismo do livro é de um velho conhecido deste blog, Fábio Fernandes. “O primmeiro contacto”, como o próprio título já entrega, oferece a seus leitores uma viagem temporal e ortográfica ao início do século XX. Há algum tempo eu estava especulando no twitter o que teria acontecido se, ao invés de ter usado o cyberpunk como referencial na hora de batizar o gênero steamer, K. W. Jeter tivesse se inspirado na space opera. Isso provavelmente nos levaria a chamar tais histórias de steam opera, deixando de lado o polêmico sufixo punk. E o conto de FF é exatamente o que mereceria ser conhecido pelo termo hipotético: usando como subterfúgio narrativo um texto que ele teria encontrado em uma antiga revista literária de 1929, o carioca nos mergulha no clima da época, em um mundo no qual a tecnologia de aviação avançou tanto e tão mais rápido que ocorre o tal “primmeiro contacto” com seres alienígenas e hostis. Um extra muito bem-vindo é identificar as várias referências a personagens históricos no texto, como nesta passagem: “A frota da Terra seria enviada para duas frentes: a primeira, em órbita geo-estacionária (calculada por um jovem scientista britannico que fazia parte da Equipe de Deffesa, um rapaz tímido de óculos chamado Clarke), formando hum annel de protecção ao longo da linha do Equador”.

Esses três contos fazem valer, sem dúvida, a compra de Imaginários volume 3 por qualquer um que tenha o steampunk e afins entre suas predileções na literatura fantástica. Porém, não podemos deixar de comentar que há outros sete contos naquelas 130 páginas. Falando rapidamente de cada um pela ordem do índice:

“A Torre das Almas”, de Eduardo Spohr, o novo best seller da fantasia brasileira, autor do romance A batalha do Apocalipse. O conto é justamente um spin-off daquele livro e é muito bem escrito, mas seus personagens parecem ter saído diretamente de uma partida de RPG.

“Breve relato da ascensão do Papa Alexandre IX”, de Marcelo Ferlin Assami, é o conto mais experimental do livro, muitos passos além do que fez Fábio Fernandes, por exemplo. E, na minha opinião, passou do ponto.

“As noivas brancas”, de Rober Pinheiro, por outro lado, é uma space opera bem tradicional. A inovação ocorre em alguns pontos da personalidade e nos hábitos de consumo do protagonista da história.

“Dies Irae”, de Lídia Zuin, também aposta num cenário muito reconhecível pelos fãs do gênero, no caso, o cyberpunk. Na verdade, é reconhecível a ponto de, acredito, ser mais bem classificado como nowpunk, tamanha é a sensação de contemporaneidade do texto (muito bem escrito).

“Corre, João, corre”, de Cirilo Lemos, para voltar a arriscar classificações, eu chamaria de fantasia suburbana. Uma história muito bem contada – entre minhas três favoritas do livro – sobre o sujeito pacato até demais que se vê obrigado a agir para tentar salvar corpo e alma do filho recém-nascido.

“Uma segunda opinião”, de Fernando Santos Oliveira, é um conto bem simples e que seria bem mais eficiente se fosse mais sucinto. Com menos páginas e mais objetividade, daria menos tempo para o leitor deduzir o final, por exemplo.

“Maria e a fada”, de Ana Cristina Rodrigues, foi o conto que gerou um artigo sobre fantasia histórica comentado por aqui. Misturando dados históricos com uma lenda a respeito de seres mitológicos, o resultado é uma narrativa com jeito de crônica de época. Um belo conto.

6 comentários:

Cirilo S. Lemos disse...

Fantasia Suburbana? Gostei disso! :D

Romeu Martins disse...

Daria uma boa coletânea, hein? ;-)

Parabéns pelo conto, Cirilo

Anônimo disse...

Excelente post, Romeu! Obrigado - mais uma vez - pelos comentários do meu conto!

Romeu Martins disse...

Foi um prazer reler este teu conto, Galvão

bibs disse...

preciso comprar esse livro, tá na lista de espera depois de vaporpunk

Romeu Martins disse...

Só não compre pela Saraiva (brincadeira, vai que o problema deles era comigo...) e o bom é que o precinho é bem camarada, ótima iniciativa da Draco.