17.1.10

Feliz aniversário, Envelheço na cidade

Este blog foi criado há um ano, no dia 17 de janeiro de 2009, data em que postei o início do texto que estava escrevendo para concorrer a uma vaga na coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário. Para comemorar o ciclo, posto abaixo a continuação da noveleta "Cidade Phantástica" que escrevi  para concorrer a outra vaga, em outra coletânea. Comentários são bem-vindos. Obrigado por um ano de leitura.

Tridente de Cristo


Largo da Carioca, na esquina das ruas do Necrotério com a do Padeiro. Início de fevereiro.

– Chegou uma carta, João. – Gritou a voz de mulher por trás da porta ainda trancada com a cancela, de cujo vão lateral se viu expelir um retângulo branco, como se fosse a língua de um paciente muito doente. – E, pelo amor de Santa Edwiges, não se esqueça do dia do vencimento do aluguel.

Havia um envelope dentro de outro. O primeiro bem simples, sujeito a se sujar e a ser amassado pelo trato não muito cuidadoso do serviço de Correios do Brasil, instituição que estava para completar meio século de existência dali a um par de anos, mas não era reconhecida pela fineza de seus funcionários. Tanto que, de início, nem permitiam o uso da efígie do Imperador para ornar os selos pátrios, com o receio de o vilipendiarem com carimbos e outras mundanices. Passada essa fase inicial, era a face imperial de Dom Pedro II, impressa em vermelho, a fitar como se fosse um irmão mais velho o homem que juntou do chão aquele intruso retangular. Estava endereçado a João Octavio Ribeiro, morador de um quarto alugado naquele casarão a meio caminho do necrotério do Hospital da Ordem Terceira da Penitência e de uma padaria famosa na região. Foi ele mesmo, um ainda jovem agente da Polícia dos Caminhos de Ferro, apesar dos cabelos e da barba acinzentadas nas vésperas dos trinta anos, quem abriu este primeiro e ordinário pedaço de papel antes de responder ao grito de sua senhoria. Ainda estava em roupas de baixo, ou seja, de cuecas cinza e camisa branca.

– Meus agradecimentos, dona Marta. E fique tranquila, assim que me for pago o soldo porei em dia minhas obrigações com a senhora. Tenha um bom dia.

Já o segundo envelope era coisa bem outra. Resistente, alvíssimo por natureza e sem máculas externas, como carimbos e selos. Ali, o nome grafado em uma caligrafia apurada e com o uso de uma poderosa tinta preta era João Fumaça. A alcunha que o agente da lei carregava desde que sua mãe lhe dera à luz em uma pequena cidade inglesa estando de carona em uma locomotiva a vapor. Os dotes de investigador do policial não chegaram a ser exigidos para descobrir quem lhe havia enviado a dupla de envelopes. Bastou desvendar as curvas, volteios e rococós do nome dos remetentes escrito com caligrafia ainda mais caprichada no papel da carta. Ou não propriamente carta, tratava-se, para ser o mais exato possível, de um convite.

O convite para o casamento do multimilionário americano J. Neil Gibson, Rei do Ouro, com a manauense Maria Pinto. João Fumaça conheceu os noivos dois anos antes, em uma aventura que quase custou a vida do trio ali mesmo, no Rio de Janeiro, a dita Cidade Fantástica, às margens da praia de Copacabana. Alguns ossos do policial ainda doíam nos raros meses mais frios do ano. Segurando os papeis, ele procurou se escorar em sua melhor cadeira – na verdade, a única disponível naquele quarto –, deu uma cuspida em direção à escarradeira e ganhou fôlego para continuar a leitura.

Relembrar os eventos de dois novembros atrás não lhe era fácil. Afinal, foram momentos de tensão que quase levaram o Império à guerra com as nações vizinhas. Por isso mesmo, o caso havia sido parcialmente encoberto, bem poucos detalhes chegaram ao público. Na verdade, só o que havia para ele se recordar daquela ocasião balançava em seu pescoço: uma medalha dourada, mas não de ouro, também com a imagem severa do Imperador. O agraciado sempre a usava, dia e noite, amarrada em uma fita com as cores verde e amarela. Mas o hábito de portar tal ornamento havia se tornado mecânico; com o decorrer dos dias, a medalha tornou-se tão parte dele quanto as cicatrizes espalhadas pelo corpo.

Valeu mesmo a pena tudo o que passou? Durante meses ele fez o possível para levar sua vida e não pensar nisso. Afinal, após tão pouco tempo, não estava seu país metido em um conflito com uma potência européia pelo controle econômico de uma ilha caribenha?

Pois relembrar agora seria inevitável. Não era nada comum que alguém de sua posição social fosse convidado para o evento que pararia a capital do Império. Todas as pessoas de importância na corte e entre o meio industrial certamente tomariam lugar na festividade que marcaria ainda a inauguração da nova Catedral do Rio de Janeiro. A corte e a indústria, simbolizadas por seus expoentes máximos, o Imperador Dom Pedro II e o recém-nomeado Conde de Mauá, padrinhos dos noivos como podia ler nos jornais, alguns dos quais espalhados pelo chão daquele quarto de solteiro.

E entre todos os nobres e empresários, estaria ele, o tal solteiro, o policial encarregado da segurança dos comboios a transportar a riqueza do país pelas estradas de ferro. João Fumaça. Uma gentileza talvez da jovem Maria, a mestiça de pai português e mãe índia que tanto o havia impressionado com sua coragem mesmo quando esteve com a cabeça na mira de armas. Ou poderia ser uma distinção do empresário americano, apesar de parecer frio e pragmático, típico aventureiro com a missão auto-imposta de se tornar milionário ainda jovem, ele lhe pareceu bem capaz do gesto por trás daquele convite.

Fosse por um, fosse por outro, fosse por ambos, agora estava o agente da lei na obrigação de atender ao chamado do papel que ainda segurava. Faltava cerca de um mês. Ele que já penava para se manter em dia com o aluguel tinha agora nova preocupação, materializada à sua frente no momento em que se levantou para abrir as portas do único outro móvel daquele cômodo, além da cadeira; de uma mesa de cabeceira, onde jazia uma Bíblia e sua arma automatizada; e da cama ainda por fazer: o guarda-roupas.

– E agora, com que roupa eu vou? – A pergunta parecia ingênua diante da resposta prática. Umas minguadas peças invariavelmente cinzentas e puídas de calças e paletós; dois pares de sapatos e um de botas.

Outro dia, outro lugar.

O erro do jovem com o uniforme preto foi não ter usado sua arma de fogo quando teve a chance, por medo de atingir o equipamento precioso à sua frente. Por culpa dessa hesitação, o homem que manuseava a pá morreu com o pescoço quebrado. Disposto a enfrentar o invasor, o uniformizado saca da espada na cintura e prepara um golpe que – ele sabe, de acordo com seu treinamento militar – deve ser fulminante, tendo como alvo a cabeça do oponente. Em sua defesa, o assassino ergue o antebraço e, para surpresa do espadachim, a lâmina que deveria cortar o obstáculo com facilidade fica presa, imobilizada. Maior surpresa é constatar que não há sangue saindo do corte, nem gritos de dor de quem recebeu o ferimento. Antes de poder fazer algo além de tentar puxar novamente sua arma, o soldado de negro, agora de guarda aberta, recebe um único soco daquele braço que deveria ter sido decepado. Forte o suficiente para esmagar a mandíbula e o jogar contra uma parede de tijolos aparentes. O som do impacto é úmido. Calmamente, o invasor retira com a mão canhota a espada ainda fixada no braço direito, caminha a passos lentos de encontro ao soldado e, diante dele, se ajoelha para terminar o serviço. De modo bastante profissional, rompe a garganta do rapaz de um lado a outro, cuidando para não sujar o traje negro. Pronto. Agora é hora de começar os preparativos para uma vingança há muito ansiada.

5 comentários:

Fabio Fernandes disse...

Caramba, como o tempo passa rápido! Parabéns, Romeu! Continue com o excelente trabalho!

Romeu Martins disse...

Eu também me impressionei quando me dei conta do aniversário, Fábio!

Obrigado por suas palavras.

Marcelo Galvao disse...

Parabéns, Romeu! Realmente, o tempo voa :)

Romeu Martins disse...

Valeu, Galvão! É verdade, rapaz... depois eu não sei de onde vieram os fiapos brancos na minha barba. :-)

Leonardo Peixoto disse...

Espero que outros personagens literários clássicos apareçam em novas histórias do universo de Cidade Phantástica .