Personalidade paradigmática da história nacional, símbolo tanto da criatividade pátria quanto de um certo desprezo pelo cultivo mais pragmático desta qualidade, Alberto Santos-Dumont (1873-1932) ainda não despertou nos ficcionistas brasileiros o interesse que sua figura mereceria. No dia 20 de janeiro, em uma comunidade do Orkut, um participante levantou a questão se já havia alguma história steampunk aproveitando o pioneiro da aviação como personagem. Logo, os demais participantes começaram a fazer uma lista de obras e de autores que imaginaram tal conceito: o romance Bilac vê estrelas, de Ruy Castro, que já foi resenhado no site da Loja São Paulo do Conselho Steampunk; e as noveletas “O plano de Robida: um voyage extraordinaire", de Roberto Causo, na coletânea Steampunk – Histórias de um passado extraordinário; e “Pais da aviação”, de Gerson Lodi-Ribeiro, na antologia 20 voltas ao redor do Sol. Entrei depois no debate para acrescentar mais duas obras à listagem, outro romance chamado O escritor, o aviador e o jornalista, do publicitário Aluízio Falcão Filho, que imagina uma amizade entre o brasileiro e o francês Jules Verne (1828-1905) e sobre o qual talvez eu fale em outra ocasião, e o romance interativo Conspiração Dumont que é o tema desta resenha.
Não sei se foi devido a tal tópico que acabei prestando atenção ao livro numa visita a uma banca de revistas ou se antes o produto realmente não estava naquelas prateleiras, apesar de ter sido produzido em 2007. O fato, porém, é que minha curiosidade foi despertada e como a obra estava a um preço bem convidativo – ao contrário de outros lançamentos da editora Devir – acabei a comprando e lendo. Ou melhor dizendo, jogando, pois um romance interativo, ou ainda, aventura solo como destaca a capa do livro, é um meio termo entre uma obra literária e um jogo de RPG, desses de tabuleiro. O leitor é convidado a interagir com o texto, escolhendo entre opções múltiplas as ações dos personagens principais - por vezes com a ajuda de um dado para decidir a sorte - e, com isso, alterando o andamento da trama. É exatamente essa a proposta dos autores Renato Silvestrini e Marcus Ferreira, com sua história base do investigador da Scotland Yard agindo na França para acompanhar um caso que já levou a morte um companheiro seu e que envolve espionagem industrial e sabotagem nas vésperas de Santos-Dumont empreender o voo de seu projeto mais ambicioso, o do mais pesado que o ar 14 Bis. Estamos no ano de 1906, em um rota que vai de Londres a Paris atraindo a atenção de personagens alemães e americanos.
O formato não chega a ser novidade, há várias obras que exploram tal interatividade possível que torna o leitor um jogador. Mas o sistema elaborado por Silvestrini, que estreou no gênero com a obra Na trilha do lobisomem, é mais eficiente que a maioria daqueles com os quais já travei contato desde os anos 80. Ele leva em conta o fator tempo decorrido na investigação e, de acordo com as escolhas feitas por nós, a história realmente evolui, sendo bem afetada pelas ações mais impulsivas ou mais refletidas. Dentro dos parâmetros possíveis, o roteiro pode variar entre uma ação quase típica de ficção hard boiled ou uma cadência mais detetivesca. Para garantir que a ambientação de época não saísse do rumo, o escritor chamou para o projeto alguém com formação em história, Marcus Ferreira, dividindo a autoria do romance interativo. Com isso, diminui bastante a chance de encontrarmos informações erradas, como me pareceu, a princípio que seria uma relacionada ao pintor Vincent Van Gogh (1853-1890), mas cuja explicação em uma das linhas possíveis do roteiro acaba sendo convincente. Um cuidado que se soma ao belo tratamento gráfico do produto, que tem uma capa muito boa e algumas fotos internas cedidas pelo Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica. Só faltou mais atenção à revisão e a uma elaboração mais bem resolvida do texto.
Todas as citadas possibilidades distintas de variação na trama impedem que a resenha seja muito detalhada. É impossível saber quais serão os rumos que um eventual jogador vai trilhar. Quais e quantos, pois apenas levando-se em conta o destino final da viagem, a dupla de autores proporciona 27 finais diferentes entre as 200 opções distintas. Ou melhor, o número final pode ser 200, mas na verdade são 199, em uma brincadeira com as manias de seu personagem título Conspiração Dumont pulou a opção número oito, exatamente como o mineiro fez antes deles, como lembra um aviso na página sete: “Santos-Dumont construiu seis balões e oito dirigíveis, todos apelidados com números, pulou o número 8 por ser supersticioso e achar que o ‘8’ dava azar. Achamos que seria bom respeitar a superstição dele e pular o número 8 nesse livro também”. Mesmo com tal ausência, sobra bastante material para o jogador se divertir com uma trama que pode não ser steampunk stricto sensu, mas envolve uma corrida tecnológica bastante interessante, um personagem ainda pouco explorado em nossa ficção e, a depender das escolhas feitas, ainda a possibilidade de interagir com personalidades históricas como os pintores Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), Pablo Picasso (1881-1973) ou outra pioneira dos céus, Aída de Acosta (1884-1962).
Um comentário:
Espero que o livro incentive seus leitores que futuramente serão escritores a usarem Santos Dumont e outras figuras históricas brasileiras na ficção .
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