Houve um tempo em que brasileiros fãs de ficção científica poderiam ir às bancas de revistas comprar um exemplar da edição nacional da
Isaac Asimov Magazine, garantia de ótimos contos do gênero, entregues periodicamente perto de suas casas. Desde o cancelamento daquela iniciativa da editora Record, há um vazio e tanto no mercado nacional que pode ser parcialmente preenchido por diversas coleções de antologias mistas. Praticamente todas as pequenas editoras que surgiram nos últimos anos e que se dedicam à literatura fantástica têm a sua: a paulista Tarja Editorial lançou a coleção
Paradigmas; sua conterrânea Draco, a
Imaginários; a mineira Estronho,
Extraneus; e a gaúcha Não-Editora é a responsável pela coletânea seriada que vou comentar nesta resenha.
Ficção de Polpa é o nome da série que revela sua origem já pelo nome, uma ambientação abrasileirada para aquelas saudosas revistas pulp fiction da primeira metade do século passado. E a edição mais recente desta publicação, inteiramente dedicada à histórias de crime e suspense, traz material de muito interesse para quem gosta de revisitações ao século XIX entre os sete contos que traz (sendo um deles uma faixa bônus), organizados pelo editor Samir Machado de Machado.
Ficção de Polpa: Crime! é o quarto volume desta editora que se apresenta à Magrite com a fase “Isto não é uma editora”. Até seu logo é um cachimbo, como no quadro famoso do pintor belga, mas que também pode servir para evocar o mais famoso dos detetives, presente nesta edição. O carioca Octavio Aragão é um dos três não-gaúchos do
staff – coincidentemente, os mesmo autores que escreveram textos tanto para este livro quanto para a coletânea steamer
Vaporpunk, da Draco – e é ele quem traz Sherlock Holmes de volta à nossa convivência, em papel e tinta, no conto “A aventura do americano audaz”. Ele, que é designer e também ilustrou a própria narrativa, parte de um subterfúgio paratextual: aquele seria um caso resgatado das próprias memórias de John Watson, a que Aragão teve acesso em uma pesquisa a respeito do sobrenome de sua família. Notas de rodapé espalhadas pelo texto reforçam esse caráter documental e ampliam a experiência de um mergulho no ambiente do Oitocentos, aliada a uma competente recriação do estilo de Arthur Conan Doyle e uma sólida pesquisa do material canônico criado por aquele autor britânico. Tudo isso para envolver o leitor em um encontro de Holmes com outra imortal criação literária daqueles tempos, mas com uma inusitada pegada realista que acaba sendo ao mesmo tempo bem-vinda e surpreendente. Um conto que merece entrar para a lista dos trabalhos que deram continuidade não-oficial à carreira do detetive de Baker Street, ao lado de obras de contemporâneos nossos como Neil Gaiman e Michael Chabon.
Outro escritor que fez jornada dupla em
Ficção de Polpa e
Vaporpunk é o paulista Carlos Orsi, que aqui assina “As muralhas verdes”, conto ilustrado por Fernando Gil. Uma narrativa no estilo clássico do detetive que deve descobrir quem cometeu o crime, cuja inovação está no local onde se deu tal crime. O investigador, do tipo cínico e que narra suas descobertas com frases curtas e de efeito, tem a missão de desvendar o mistério de uma morte cometida na frente das câmeras, a vista de todo o Brasil, em um episódio de um reality show concorrente do mais famoso de todos em nosso país (aliás, sabemos que estamos no futuro porque a edição em tela do Big Brother segundo o narrador é a XXIII, sendo que em 2012, a Globo deverá exibir a décima-segunda). Como no caso do concorrente, baseado em
1984, de George Orwell, o programa fictício de Orsi também se inspira em uma distopia literária, no caso
Nós, escrita em 1921 pelo russo Ievguêni Zamyatin. Em a Casa de Vidro, os participantes ficam expostos à atenção da audiência vivendo entre paredes transparentes mas isolados do mundo por um muro verde. Mesmo com tamanho escrutínio de suas intimidades, aparentemente um concorrente conseguiu eliminar, de fato, o outro, e talvez tente fazer isso novamente, o que a produção do programa busca evitar contratando o protagonista da história. Deixo a sugestão para Orsi: ele poderia ganhar um bom dinheiro bolando atrações do tipo para a Endemol, a dona da marca Big Brother. Poderíamos ter novo milionário aqui.
Para fechar a trinca, o português, filho de belgas, Yves Robert, que em seu conto “A conspiração dos relógios” – ilustração de Bernardo Assis Brasil – retoma personagem já apresentado em edição anterior de
Ficção de Polpa e que chegou a ser adaptado para um curtametragem premiado, no Rio Grande do Sul. No caso, um investigador especializado em casos estranhos que é, ele mesmo, um caso estranho a ser investigado. Esquizofrênico, o lusitano tem como amigo um coelho falante, azul e antropomorfizado de nome Tobias. Nesta sua segunda aventura, desvenda o caso de Celeste Martins, uma atendente de caixa de supermercado que parece ser vítima de um surto paranóide: ela desconfia da tal conspiração do título ao perceber que sempre olha para relógios digitais no momento em que os algarismos apresentam alguma ordenamento misterioso: sejam seqüências diretas como 12:34; números iguais, 2:22; ou alguma outra aparente coincidência do tipo. Um conto simples e ao mesmo tempo fantástico, sustentado por personagens bastante carismáticos e ótima narrativa – imperdível a sequência em um shopping na qual o detetive observa as horas sem um padrão definido no relógio de parede até o exato instante que sua cliente se vira e...
O trio seguinte é formado por conterrâneos da editora, entre eles Rafael Bán Jacobsen que também situou seu texto em um ano propositalmente não-identificado do século XIX. “A carne é fraca”, com ilustração de Elvis Moura, foi bem resumido na introdução escrita por Samir Machado de Machado, “O Capitão Mostarda, na biblioteca, com a chave inglesa”: “O escritor Rafael Bán Jacobsen retoma a tradição dos crimes envolvendo açougueiros de fim de século – de Sweeney Todd aos crimes da Rua do Arvoredo em Porto Alegre – para compor um intricado triângulo de suspeitas entre os personagens de
A carne é fraca, reveladas aos leitor apenas através de cartas e diários – e onde somente ao leitor é dado o privilégio de conhecer todos os detalhes”. Para não desnortear demais o citado leitor, cada alteração de ponto de vista narrativo é bem marcado por mudança gráficas: uso de versalete no caderno de anotação do açougueiro, itálico no diário de seu ajudante, fonte normal no depoimento de sua esposa à polícia. Um conto bem narrado e bem executado.
Outra narrativa de múltiplos pontos de vista é de autoria da única escritora daquelas páginas, Carol Bensimon: “Agulha de calcário”, com um grande desenho de Maurício N. Santos. O cenário é dos mais interessantes, um hotel temático localizado em uma pequena cidade francesa, que dedica seus quartos a grandes detetives da ficção, como Holmes e Dupin. Por ele passam os diferentes narradores que se alteram, hóspedes e funcionários que acabam por testemunhar um crime naquela paisagem turística. Trata-se do texto mais ousado em termos formais deste volume, propondo uma participação ainda maior do leitor que os demais. Por isso mesmo, talvez não agrade a todos os gostos.
Encerrando a participação gaúcha no livro, uma noveleta que usa a Porto Alegre dos dias de hoje em uma ambientação bastante realista. O jornalista e escritor Carlos André Moreira criou em “Um dos nossos” (ilustrado por Diego Moreira) um perito da Polícia Civil do Rio Grande do Sul chamado Roszynski que em breve deve protagonizar livro próprio. Neste caso de estreia, o descendente de poloneses investiga um crime envolvendo não apenas um, mas vários dos “nossos”, ou seja, membros da polícia daquele estado, entre mortos e suspeitos. Esta é a inevitável narrativa hard-boiled da edição, aquele estilo das histórias de detetive mais centrado na violência crua, na troca de socos e de balas, que na investigação de detalhes criminais. Mas justiça seja feita ao novato Roszynski: apesar de ser bom para responder aos tiros, ele também sabe usar a cabeça para juntar as pistas. Um personagem bastante promissor, espero que tenha carreira longa em novos livros.
Quanto à comentada faixa bônus, uma tradição de
Ficção de Polpa que em todo volume sempre resgata algum escritor do tempo das pulp fiction originais, temos nesta edição um pioneiro das histórias policiais que é um verdadeiro achado por parte do organizador do livro. Ernest Bramah é um escritor inglês contemporâneo de Arthur Conan Doyle que, em seu tempo, alcançava ainda maior retorno financeiro com as histórias que vendia para publicações como a
Strand Magazine que o obtido pelos casos de Holmes. As razões para ele ter caído em esquecimento é um desses mistérios para os quais ainda não se criou detetive capaz de solucionar. “A moeda de Dionísio”, ilustrado por Rodjer Goulart, é a origem de seu personagem mais célebre, um investigador cego conhecido pelo pseudônimo de Max Carrados. Lendo a história daquele homem que perdeu a visão em um acidente e mesmo assim se dedicou a combater o crime não pude deixar de fazer a associação com outro personagem de histórico parecido criado por Stan Lee no século seguinte. Tanto que fui pesquisar possíveis conexões para descobrir que o pessoal do
Wold Newton Universe já havia notado tais coincidências e tratou de inventar uma origem comum ao personagem de Bramah e ao Demolidor.
Para encerrar, não dá para deixar de falar do excepcional tratamento gráfico da série
Ficção de Polpa e deste volume em particular. Tudo é muito bem trabalhado para remeter às publicações do passado, desde o formato de bolso até o efeito de desgaste da contracapa. Vale destacar os vários anúncios antigos reproduzidos no interior da coletânea, os mesmo que quando surgem nas páginas dos contos têm conexão direta com os temas ali tratados. Uma sacada excelente e que, mesmo assim, desejo que tenha vida breve, sendo substituída algum dia por anúncios reais que gerem receita à editora. Outros detalhes também devem ser mencionados, como os textos de apresentação de cada escritor e as duas páginas que servem de bastidores para a criação da arte da capa, com desenho de Jader Corrêa e pintura à mão de Matias Strebb. O resultado ainda que assumidamente inspirado no cinema, me lembrou mesmo das HQs de Spirit, do americano Will Eisner. Não sei se na reprodução que acompanha esta resenha vai ser possível notar, mas recomendo quem tiver o livro à disposição que observe atentamente o efeito que a dupla Corrêa e Strebb conseguiu obter na mão trêmula do moribundo baleado pela femme fatale. Uma apresentação à altura de um bela coletânea.