3.5.10

O último grande aventureiro

Os posts recentes sobre o artista plástico Sillof, este e aquele, fizeram com que eu me lembrasse de qual foi a primeira vez que o citei por aqui: foi na minha gigantesca – eu assumo – resenha de Gotham by Gaslight. A citação se deu porque ele criou uma série de bonecos articulados da Liga da Justiça baseados naquele álbum ilustrado por Mike Mignola. E por sua vez, isso me recordou também de algo que deixei escrito naquela crítica, ao comentar justamente o trabalho do desenhista americano. Escrevi o seguinte, na ocasião:

Seria fácil dizer que seu estilo é único e inimitável, mas a verdade é que desde a primeira vez que o percebi, passada aquela fase nada chamativa de Tropa Alfa, eu o comparo com um quadrinista nacional, mas isso fica para uma próxima resenha.

Como eu não gosto de deixar pontas soltas, mesmo sabendo que ninguém ia se dar conta disso e com uns três meses de atraso, deixem-me dizer sobre o que eu me referia. Ou melhor, sobre quem: Flavio Barbosa Mavignier Colin (1930-2002), um dos maiores artistas que os quadrinhos e a publicidade brasileira, para dizer o mínimo, já conheceram. Tudo aquilo que elogiei em Mignola posso repetir em relação a esse carioca. “Esteta da arte gráfica”? Sim, sem dúvida. “Traço marcante, sólido, conciso, minimalista”? Podem apostar. “Tão minimalista que imaginar um painel seu subtraído de uma única linha é imaginar um desenho incompleto”, foi o que eu escrevi sobre o criador de Hellboy, é o que afirmo também a respeito do homem que quadrinizou a primeira série da TV brasileira, “O Vigilante Rodoviário”. “Hoje, a arte de Mignola dispensa assinatura, um leitor habitual do gênero reconhece sua composição sóbria, a estilizacão dos personagens, a arquitetura urbana bem delineada, o traço firme e sem meios tons que cria uma atmosfera entre o suspense e o horror seja lá onde ela aparecer”. Vale o mesmo para a arte de Flavio Colin.

É possível exemplificar o trabalho desse mestre com seu último quadrinho publicado e premiado em vida: Fawcett, uma graphic novel dedicada ao homem que pode ser considerado o último dos vitorianos. Roteirizada pelo então novato André Diniz – outro carioca que começou logo com editora própria, a Nona Arte, pela qual lançou aquele álbum e outros trabalhos memoráveis, como 31 de Fevereiro –, a HQ rendeu a Colin o troféu Angelo Agostini de melhor desenhista de 2001, ano anterior ao de sua morte. A história conta uma versão ficcional da última grande aventura de Percy Harrison Fawcett (1867-1925), na sua segunda exploração pela floresta Amazônica. Diniz fez um roteiro enxuto, quase tão econômico quanto a arte de seu ilustrador convidado, focado nos últimos momentos do Coronel Fawcett, imaginando o encontro dele com índios amazônicos. O trabalho lembra bastante o fumetto Martin Mystèry, não apenas pela temática arqueológica, mas também por um elemento fantástico. O roteirista inclui em sua trama um objeto mítico: a estatueta de basalto que o explorador teria ganho de presente de um conterrâneo, o escritor H. Rider Haggard (1856-1925), autor de As minas do rei Salomão. Vou citar um trecho do material de apoio presente no álbum com palavras do próprio coronel:

Existe uma propriedade particular nessa imagem de pedra, e todos podem senti-la ao tocar a mão. Estranhamente, uma corrente elétrica atravessa o braço da gente, causando um choque tão forte que muitas pessoas a largam de imediato. Acredito sinceramente que ela veio de uma das cidade perdidas. Quando descobrir os significados existentes nela, descobrirei também o caminho para chegar no lugar de onde se originou.

Quem conhece o personagem dos quadrinhos italianos pode concordar comigo na semelhança entre tal objeto, supostamente real, e a arma de raios paralisantes da ficção. André Diniz usou bem esse elemento e todo o mistério que cerca o desaparecimento de seu protagonista e com isso abriu espaço para Flavio Colin fazer o que sabia tão bem. Neste derradeiro trabalho, a estilização dele estava apuradíssima. A arte bem delineada, com poucos e precisos riscos; a técnica de sombreamento com picotes, tão característica do artista, funciona como assinatura; o cenário consegue ser exuberante e simples ao mesmo tempo, bem como os personagens, que parecem ter saído de um software de vetorização. Ou, para ser justo, os softwares de vetorização é que parecem ter sido inspirados no tipo de ilustração que esse carioca fazia décadas antes de eles terem sido desenvolvidos. Naquela que deve ter sido sua última entrevista, logo após ter ganho o troféu por Fawcett, Colin falou ao Universo HQ sobre sua carreira e comentou o estilo aprimorado em décadas de prancheta:

Eu não rabisco muitas coisas. Uso muito contraste, mas procuro sintetizar, fazer a coisa simples. Talvez seja por isso que dizem que eu sou moderno, eu estilizo, às vezes meio caricato. Por exemplo, eu acho que se você for desenhar um bandidão, ele tem que ter no traço, na figura, alguma coisa truculenta, que o leitor olhe e diga 'Esse aí é o bandido; e não o mocinho'.

Mas a simplicidade é muito difícil, porque é muito mais fácil colocar do que tirar. Agora, eu digo o seguinte, a base tem que ter estudo, tem que ser acadêmica. Meu esboço é quase acadêmico, a estilização é feita depois. Você não pode partir direto para o cartum, e eu vejo muito disso, principalmente, em fanzines. Mas o cartunista sabe que tem que ter essa base de anatomia. Estilizar direto é muito difícil e o desenho não fica completo.
No mesmo site, podemos encontrar um depoimento do roteirista André Diniz sobre aquela premiada parceria que houve entre os dois. O texto se encerra assim:

Costumo dizer, meio amargamente, que esta é a vantagem de fazer parte de um meio tão desprestigiado quanto os quadrinhos: é como se eu estreasse a minha primeira peça de teatro tendo Paulo Autran como protagonista. E, falando francamente, justo seria se Colin simplesmente não tivesse tempo para desenhar Fawcett, devido a compromissos com outras editoras brasileiras e estrangeiras.

Mas as editoras nacionais não o procuravam, pois faltava ainda um ingrediente para que suas histórias fossem vendáveis: ele estar morto. Agora, vão pipocar lançamentos com o nome de Colin.

Por tudo isso eu identifico tanto a obra de Flavio Colin com o trabalho de Mike Mignola. E o álbum Fawcett, com suas 50 páginas, é um ótimo ponto de partida para estabelecer as comparações e conhecer, ou rever, o traço desse artista, exarcebadamente nacionalista, que dizia detestar o Batman, entre outros super-heróis importados dos EUA. Mas, contraditório, apontava entre suas maiores influências americanos como Alex Raymond (1909-1956), o criador de Flash Gordon, e Chester Gould, de Dick Tracy.Vale ainda mais por ter sido um dos últimos trabalhos lançados com a assinatura dele – que teve material publicado postumamente, obras que não conseguiu ver editadas em vida, exatamente como previu Diniz no texto citado acima –, pela proximidade da temática com o assunto deste blog e ainda por ser possível encontrá-lo para baixar gratuitamente, e com a autorização de André Diniz, na internet. Neste endereço, por exemplo. Para quem ainda não teve o prazer, é uma chance de ser apresentado a um grande quadrinista que o mundo perdeu em 2002 e que o Brasil não soube valorizar o tanto que merecia, com todas as suas idiossincrasias. Assim como o P. H. Fawcett retratado por ele, Colin foi um dos últimos grandes aventureiros, no caso, um explorador dessa selva que são os quadrinhos nacionais.

4 comentários:

Octavio Aragão disse...

Belo texto, Romeu, e justa homenagem a esse estilista das HQs nacionais, que poderia ter sido nosso “Jack Kirby”, caso aqui houvesse uma indústria de quadrinhos digna desse nome.

Romeu Martins disse...

Sem dúvida, Octavio, sem dúvida. Colin era um verdadeiro esteta, sua obra merecia ser revista e ter o reconhecimento, mesmo que póstumo, merecido.

Obrigado pelo comentário.

Henrique Placido disse...

Concordo com tudo o que você disse, mas acrescento que, pra mim, o Colin coloca o Mignola no bolso.

Admiro o traço do Mignola, mas sempre o achei muito irregular: às vezes ele parece "perder o controle" da própria arte. Já cheguei a odiar alguns de seus trabalhos ("Ironwolf" e a própria "Gotham by Gaslight", por exemplo) porque não conseguia distinguir entre dois personagens nem entender o que estava acontecendo em alguns painéis.

Já o Colin é um mestre supremo. Acho impressionante como ele consegue ser síntético sem perder a expressividade (citando do post, "um bandidão tem que ter no traço alguma coisa truculenta") e como ele consegue usar a simplicidade para construir a complexidade. Lembro especificamente da cena do jacaré gigante em "Caraíba", as escamas, as canoas, elementos quase geométricos compondo quadros desbundantes... Deviam fazer um museu pra esse cara.

Romeu Martins disse...

Deviam mesmo. E o álbum Caraíba é precioso pelo texto em que o próprio Colin detalha seu método de ilustração.

É uma pena o material não ter sido editado em vida. Mas o Mignola melhorou muito de Gotham by Gaslight pra cá, nestes... vinte anos ;-) Há quadros preciosos dele em Hellboy.