Na
chamada que escreveram para a submissão de textos da coletânea
Vaporpunk, os editores Gerson Lodi-Ribeiro e Luís Filipe Silva deram uma conceituação bem mais livre para o gênero steampunk. Na visão da dupla, as histórias não precisam necessariamente se passar na Era Vitoriana nem ter tecnologias baseadas no vapor para se enquadrar no estilo. Eles admitem mesmo uma noveleta situada em tempos atuais, como revela este trecho: "Nos presentes alternativos, a ação se passa mais ou menos em nossa época, só que numa linha histórica alternativa, modificada pelo advento precoce de uma tecnologia."
Dentro desta concepção mais liberal do que seja steampunk, existe um exemplo perfeito de conto brasileiro ambientado num presente alternativo alterado substancialmente por uma tecnologia surgida no século XIX. O nome da história é "Não Mais" e foi escrita por Carlos Orsi para outra coletânea, a
Phantastica Brasiliana, organizada em comemoração aos 500 do Descobrimento do Brasil, por ele mesmo e por Lodi-Ribeiro para a editora da qual ambos foram sócios, a Ano-Luz.
O motivo para o título deste post - além de brincar com três outros anteriores chamados Steampunk made in Brazil - é que o texto de Carlos Orsi se encontra disponível em espanhol no portal argentino que é referência em contos fantásticos, o
Axxon. Neste endereço, o leitor que não teve acesso ao livro brasileiro pode encontrar "
Ya No", traduzido em 2004 por Claudia De Bella. A introdução, assinada por Alfredo Álamo e Sergio Gaut vel Hartman, dá uma ótima ideia do conceito que os
hermanos têm deste nosso conterrâneo:
Carlos Orsi Martinho es periodista y, probablemente, el mayor autor del género de terror en lengua portuguesa. Carlos nació en Jundiaí, en el interior del estado de São Paulo, Brasil, el 5 de enero de 1971. Sus primeras historias se publicaron entre 1986 y 1989, en el Diario de Jundiaí y su primer trabajo profesional apareció en 1992, en el N°24 de la edición brasileña de la revista Isaac Asimov. Su primera colección de cuentos fue Medo, Mistério, Morte (1996) y la segunda O Mal de Um Homem (2000), e incluye "A Engrenagem Vulgar", elegido el mejor relato de 1999 por los lectores de la revista Quark. Muchas otras historias de Martinho aparecieron a partir de entonces en distintas antologías y fanzines, tanto nacionales como extranjeros. Su predilección por las ucronías permitirán que vuelva ser huésped de estas páginas muy pronto.
Por sua vez, ler o conto é a melhor maneira de entender o motivo para tal apresentação elogiosa. Orsi criou uma história em que a família real brasileira, tendo D. Pedro II à frente, perpetuou-se no poder - literalmente -, dominou boa parte do mundo e com isso o Brasil segue sendo um império naquele presente alternativo - provavelmente, o ano 2000 da publicação do livro. Agora, a tecnologia que muda tudo não é exatamente o que estamos acostumados a ver nos livros de Jules Verne ou de H. G. Wells. Não se trata de algo mecânico ou elétrico, um novo dirigível ou um computador vitoriano. A tecnologia é de natureza mística.
O escritor coloca em nossas terras o misterioso alquimista alemão Athanasius Kircher (1601 - 80), que, nesta versão, tornou-se portador de um conhecimento que altera a história: importando certas substâncias do Haiti, a terra dos zumbis, ele se mostra capaz de criar um estranho fluido verde que garante a quem se banha periodicamente nele nada menos que a imortalidade. Em alguns casos, como ocorre com o alquimista, àquela altura com seus 400 anos, e com a realeza, sem consequências negativas; em outros, caso dos negros, ainda mantidos como escravos naquela realidade, os usuários se tornam criaturas sem vontade própria.
O mago europeu, trazido a nosso país por José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) - chamado apenas de Andrada na história -, tornou-se uma figura rasputiniana na corte dos Bragança. Produzindo o líquido alquímico no Jardim Botânico, ele garante a imortalidade dos que interessam a seus planos, tanto que a nobreza brasileira se encontra distribuída em reinos espalhados por toda a Europa e, neste continente, o Império brasileiro se estende da Argentina ao México. Os EUA deste universo foram derrotados ainda no século XIX em uma guerra que determinou o controle verde-amarelo do canal do Panamá, e não chegam a ser ameaça aos domínios de Athanasius, eminência parda do regime.
Mas o mundo influenciado por tal poder não é um lugar agradável. Além da escravidão persistir, arte, ciência e a imortalidade são privilégios das classes abastadas, dos escolhidos pelo alquimista. Várias personalidades famosas são citadas no texto como exemplo daqueles que não quiseram se submeter e tiveram fim trágico: Machado de Assis, Euclides da Cunha, Santos Dumont. No tempo em que se passa a narrativa, o nome do grupo de conspiradores que tramam contra o despotismo de Athanasius é o mesmo do conto: Não Mais em português, Ya no, em espanhol. O termo foi cunhado em um manifesto escrito pelo protagonista da história, Madeira, que aliado a outros agentes na capital do Império - cujos nomes são homenagens de Orsi a colegas cariocas escritores de FC - se prepara para dar um golpe desesperado na sede do poder do Rasputin germânico que domina o país.
Um dos homenageados no conto, Gerson Lodi-Ribeiro,
escreveu uma coluna em que apresentou o livro
Phantastica Brasiliana e comentou o texto de Orsi. Segue um trecho:
Qualquer fã que tenha tido o privilégio de ler o magnífico Anno Dracula (1992) não deixará de notar um certo paralelismo temático entre a noveleta de Martinho e o romance alternativo do inglês Kim Newman. Passado na Inglaterra Vitoriana do final do século XIX, o romance mostra o que teria acontecido se Drácula houvesse vencido o confronto contra o grupo liderado por Van Helsing e Jonathan Harker. O Império Britânico, de longe a potência mais poderosa da Terra, é dominado por uma estirpe de imortais, no caso a nobreza inglesa vampirizada por um Drácula que desposou a Rainha Vitória e tornou-se Lord Protector do Império. Mais ou menos a mesma coisa ocorre em "Não Mais", embora os imortais de Martinho não sejam vampiros. Em ambos os trabalhos há uma revolta de homens e mulheres notáveis que se recusam a compactuar com a nova ordem, mesmo ao preço de abrir mão da imortalidade. Tanto num quanto noutro há uma espécie de sociedade secreta composta por mortais patriotas e abnegados — a Não Mais da noveleta e o Diogenes Club do romance — lutando desesperadamente para reverter a situação ao status vigente antes do advento da imortalidade. Este paralelismo é um tour de force adicional dessa noveleta que se constitui num trabalhos mais interessantes e elaborados já escritos por aquele que é reputado por muitos como o autor brasileiro de horror mais criativo da atualidade.
O que mais dizer? Vale ainda citar o final que se vale de uma engenhosa manipulação metalinguística por parte de Carlos Orsi, remetendo o leitor dez anos depois da conclusão do conto, portanto, considerando-se a data do lançamento do livro, ao que seria aproximadamente os dias de hoje. Só ela, não fosse o excelente cenário construído, a perfeita caracterização dos personagens e os diálogos inspirados, já valeria a leitura da obra. Mas para quem ainda não se convenceu de que "Não Mais"/"Ya No" seja uma noveleta steampunk, vou encerrar com a passagem mais emblemática do texto, reforçando o convite para que o leiam por inteiro:
Frente a él, un intrincado sistema de ruedas, palancas, engranajes, cilindros y bielas trabajaba en el más absoluto silencio. El aparato ocupaba toda la altura de la torre y atravesaba el piso de mármol rosado, hundiéndose en el subsuelo.
La planta baja, donde se encontraba el alquimista, era el único nivel que poseía un piso sólido. Encima del mármol, alrededor del hueco central de la torre y a lo largo de toda la altura del edificio, el espacio entre el aparato y las paredes de bronce era interrumpido, aquí y allá, por una espiral simple, hecha de plataformas metálicas, que daba acceso a puntos específicos del Molino... así era como Athanasius llamaba a su silenciosa creación.
Por la espiral caminaban los esclavos sin mente, trabajando como abejas u hormigas para mantener a la reina alimentada y saludable. Esos esclavos salían de pasadizos tubulares que se abrían en la superficie interna de la torre.
El grosor del espacio que separaba la cara externa de la Torre de las paredes internas no era nada despreciable. Ese era otro truco, otro legerdemain del alquimista: para un observador casual, un noble visitante, la Torre del Bronce parecería hueca, un simple galpón metálico, construido para albergar al Molino y sustentar el volumen de la gran caja de distribución montada en su pináculo. Pero, en realidad, toda la estructura estaba entrecortada por corredores, cámaras, rampas y escaleras: una colmena secreta habitada por esclavos.
Todo sumido en el silencio. Como máximo, el sonido de una respiración, de un tenue suspiro, cada hora y media.
Como máximo.