9.5.11

Mobilidade urbana

Daqui a milhares de anos, Londres ainda estará de pé, viva e, literalmente, se mexendo. Pelo menos é isso o que vemos na série de quatro romances escritos pelo inglês Philip Reeve, cujo primeiro volume, escrito em 2001, será adaptado brevemente para os cinemas pelo cineasta Peter Jackson e que, não por coincidência, acaba de ser lançado no Brasil pela editora paulista Novo Século. Em Mortal Engines, título original que faz uma referência shakespeareana e foi conservado na edição nacional, não é somente a cidade que conhecemos hoje como a capital inglesa a merecer o nome de máquinas mortais. Outras localidades de um mundo devastado eras antes pela chamada Guerra dos Sessenta Minutos adotaram uma estratégia radical para garantir a sobrevivência e a perpetuação de seus habitantes: elas se tornaram gigantescos engenhos móveis, rodando em cima de esteiras, lagartas, rodas, como tanques de guerra pelo solo calcinado e pelo que antes eram leitos oceânicos. Em um primeiro momento, a ideia era mover prédios e ruas, praças e monumentos para lhes permitir fugir dos terremotos e do avanço das geleiras, subprodutos do apocalipse nuclear causado pelo homem. Porém, com o passar de muitos e muitos anos, a estratégia se modificou, e da defesa a mobilidade das chamadas Cidades Tracionadas se tornou uma arma de ataque. Naquilo que ficou conhecido como Darwinismo Muncipal, habitações maiores passaram a caçar e a devorar as menores, dando origem ao próximo estágio evolutivo na luta entre presas e predadores sobre a Terra.



E Londres não só é a cidade pioneira nesta nova forma de luta pela sobrevivência (foi um de seus moradores, o mitológico Nikolas Quirke quem desenvolveu o projeto) como também é a mais eficiente máquina de matar daqueles tempos. O lugar se tornou uma estrutura de seiscentos metros de altura, divididos em sete níveis como em um bolo de casamento, na comparação feita pelo próprio autor nas páginas iniciais de sua obra. Quanto mais alto, mais longe do inferno superaquecido e ruidoso que são os motores a garantir o tão necessário movimento daquela versão pós-apocalíptica de Londres. O topo mesmo é dedicado às principais construções da cidade: no centro a Catedral de São Paulo, reconstruída muitos séculos antes do momento em que se passa a história do livro pelo próprio Quirke; o Palácio das Guildas, onde se reúnem as diversas castas profiissionais da cidade, como os Engenheiros, os Historiadores, os Navegadores e os Comerciantes; e ainda o Engineerium, a sede do poder municipal. O herói involuntário que coube a esta narrativa pode ser encontrado um pouco mais abaixo, trabalhando em um museu: o aprendiz de terceira classe da Guilda dos Historiadores, Tom Natsworthy.

Pelos olhos deste jovem órfão é que desde as primeiras páginas vamos conhecer o cenário criado por Reeve. A princípio, este protagonista se mostra tão empolgado com as conquistas londrinas quanto qualquer outro de seus conterrâneos: assistindo ao espetáculo por telões, ele torce para que sua cidade, deslocando-se a 120 km/h, consiga devorar um pequeno e assustado vilarejo de mineradores de sal, conquistando assim equipamentos necessários para a manutenção daquela estrutura envelhecida. Consumir uma outra localidade também é a chance de encontrar vestígios deixados pelas antigas civilizações, aquilo que chamam de Old-Tech. Parte das atribuições de Tom era justamente revirar os achados vindos dos lugarejos abatidos e, no dia em que tudo mudou em sua vida, o rapaz faria isso ao lado do herói local, Thomas Valentine, um Historiador responsável por inúmeras descobertas que seguiam garantindo o lugar de Londres no alto da cadeia alimentar. Tom parecia ter uma chance única de subir ainda mais na escala de valores de sua sociedade quando ele salva a vida daquele veterano do ataque de Hester Shaw, uma assassina encapuzada nas entranhas da Cidade Tracionada. Só que isso é apenas o começo da reviravolta de sua vida e da visão que o rapaz tem do tal Darwinismo Municipal.

A partir da jornada de Tom e de Hester pelas terras arrasadas e por diversas outras cidades móveis daquele mundo, paralelamente à busca de respostas que Katherine - a filha do heróico Valentinte - faz em Londres, o escritor inglês vai construindo uma história de ação e de aventura mais indicada para o público infanto-juvenil. Tanto é assim que Reeve ganhou com seu livro alguns prêmios dedicados a obras destinadas a esta faixa de idade. Mas as metáforas e a ironia que envolvem sua trama podem muito bem agradar outras audiências também, com mais bagagem para compreender certas ironias tão inerentes ao humor britânico. As situações que nos fazem comparar aquela versão futurista com a capital da Inglaterra de hoje são bons exemplos. Mesmo passado tanto tempo, e em um mundo tão modificado, algumas idiossincrasias londrinas ainda estão preservadas, como a proibição de armas na cidade e o ar esnobe de alguns de seus moradores, mais preocupados com o formato de sanduíches do que em saber qual o ingrediente oculto naquele exótico recheio que lhes é servido.

E entre o público que pode se interessar pelo livro estão aquelas pessoas que buscam novidades ligadas à ficção retrofuturista, da qual a cultura steampunk é a principal mas longe de ser a única representante. Na costura de tecnologias que os personagens de Mortal Engines fazem, temos muitos elementos reconhecíveis de outros períodos históricos. Um exemplo são os quase onipresentes zepelins que cruzam as cidades, levando comerciantes e piratas de um lado a outro (pois de algum maneira inexplicável, nunca mais se conseguiu reproduzir a invenção de naves mais pesadas que o ar, mesmo decorridos milhares de anos), máquinas aladas tão típicas do dieselpunk. Ou ainda os vários fuscas usados pela elite londrina para se locomover dentro da cidade. Sem querer fazer um jogo de palavras, eu diria que essa mistura não faz do livro uma obra retrofuturista, mas sim uma em que nos apresenta um futuro retrô. Explico: no primeiro caso teríamos alguma tecnologia que surge antes do tempo no passado; no segundo, vemos um futuro que, por falta de opções, acaba recuperando antigas soluções tecnológicas. Mesmo assim, a proximidade é tamanha que o Conselho Steampunk foi contatado pela editora Novo Século para organizar o evento de lançamento em São Paulo e foi a empresa de um dos fundadores, o carioca Bruno Accioly, a responsável pelo ótimo site dedicado ao livro. Nada mais justo que parcerias como estas se fortaleçam e se repitam.

A editora Novo Século parece disposta a continuar apostando nesta série, como bem comprovam as últimas das 280 páginas deste lançamento. Nelas encontramos "O norte congelado", primeiro capítulo de Ouro do predador, o já anunciado segundo volume da série Mortal Engines. Uma excelete notícia que para ficar ainda melhor viria com a confirmação de que veremos ainda mais cuidado editorial na preparação do texto do que vimos nesta primeira parte. A tradução, a cargo de Eduardo Barcelona Alves, deixou passar algumas inconsistências em termos que aparecem ora em português, ora em inglês: Caçador/Stalker, Palácio das Guildas/Guildhall. Fora isso, alguns erros que poderiam ter sido evitados com uma revisão mais apurada, como a "calda" de um animal que aparece no lugar de "cauda" na pág. 24. Se esses cuidados forem memos seguidos, fãs de uma boa ficção científica terão muito a comemorar com esta ótima tetralogia completa em suas estantes.

6 comentários:

Alexandre Lancaster disse...

O Reeves é muito bom – eu sempre recomendo o "rumo aos anéis de saturno", que é mais steam ainda e saiu pela companhia das letras. Mas me pergunto porque manter o título original do Mortal Engines no Brasil.

Romeu Martins disse...

Pô, não li esse outro livro dele... Bom saber!

Também estranhei terem mantido o nome em inglês, sendo que o próximo volume vai ter o título traduzido... E ainda mais a opção deles de darem tamanho destaque ao nome do autor na capa. Convenhamos, isso é mais próprio de escritores com carreira consolidada entre os fãs, daqui, como Stephen King...

Luiz Felipe Vasques disse...

A tradução teve medo de ousar, e de expor sua ignorância: daí o título ser em inglês, de "Out-Country" não ter virado um "Lá-Fora", "Terrafora" ou o que seja; e de embarcações navais com nomes em português, mas com "air" na frente, terem se mantido em inglês. Entre uma tradução conservadora e capenga, e uma revisão de texto desleixada, bem...

Romeu Martins disse...

o livro tem mesmo vários problemas tanto de tradução quanto de revisão, infelizmente. Na resenha, procurei apontar alguns.

Tiago disse...

Não achei nenhum problema os termos serem mantidos em inglês, o problema realmente foi o apontado dele ora usarem em inglês ora em português, como é uma historia de ficção ter ficado como Out-Country, Old-Tech ao invés de ter sido traduzido foi uma ótima escolha e combina bem com a historia. Afinal de contas qualquer um que goste de ficção entende esses termos perfeitamente.

Romeu Martins disse...

É, para mim o problema maior está na incoerência das escolhas da tradução, variar entre caçadores e stalkers, palácio das guildas e guildhall dá a impressão de que mais de um tradutor esteve trabalhando no livro e sem alguém para padronizar o material. Ainda não li a continuação, mas espero que tenham melhorado nesse aspecto.