A história por trás da história é quase coisa de terror, também. Eu o escrevi para participar de uma coletânea de uma editora, mas fui alertado por um beta reader de algo que deveria ter lido com atenção nas regras de envio: o livro, que até hoje não foi impresso, só iria aceitar FC e este não era bem o caso do meu texto. Pensei em enviar para uma segunda coletânea, de uma outra editora, mas não gostei muito dos bastidores daquele projeto - que nunca saiu - e desisti. Dai mandei o texto para uma terceira coletânea, de uma terceira editora, depois de mais de um ano, desistiram da publicação. Agora, o enviei para uma quarta coletânea de - adivinhem - uma quarta editora. Vamos ver se desta vez sai, se não o conto, pelo menos a obra que está sendo organizada.
Há um projeto de transformar este conto em uma graphic novel, quando puder, divulgo mais detalhes a respeito. Por enquanto, segue a parte inicial desta narrativa que parece assombrar o meu HD enquanto não dá um jeito de ser publicada. Abraço, boa leitura, bom final de semana.
Item de Colecionador
Vaso Ruim observa sua imagem reproduzida em detalhes no boneco de aproximadamente 30 centímetros de altura que o visitante colocou na mesa à sua frente. Detalhes minuciosos, a cabeça de cabelos raspados do brinquedo revelava o mesmo crânio irregular com formato aproximado ao de uma bola de futebol americano daquele jovem roqueiro. Característica que ele passara a ter desde o acidente de carro que inspirou seu apelido. Na verdade, aquele acidente também foi o ponto de partida para o batismo da banda do rapaz, que por sua vez tem o mesmo nome do primeiro álbum lançado por ela – Traumatismo Craniano, conhecido pelos fãs como “aquele do raio-x”, por ter trazido na capa do CD uma radiografia real da cabeça do vocalista, ainda com pinos de titânio sustentando ossos fraturados. A barba comprida, ruiva e pontuda, do Vaso Ruim de brinquedo também é idêntica a do real; a expressão de ódio constante, idem: sobrancelhas como duas setas apontando em direção ao nariz e a boca crispada num trapézio com a arcada dentária à mostra. Mas nem de longe lembrando um sorriso.
A mudança mais evidente entre o homem de quase dois metros e sua miniatura com um sexto do tamanho eram as roupas que cada um vestia. O boneco envergava um uniforme típico de show, o plástico de que era feito fazia a imitação perfeita do couro preto grudado no corpo, incluindo os pés, calçados com coturnos de estilo militar. Na parte de trás da jaqueta, o logo da Traumatismo Craniano: uma caveira estilizada, cor de sangue, estilhaçada. Já o modelo vivo daquela escultura estava de camiseta vermelha, de time de futebol gaúcho, bermuda e chinelos de dedo de um verde berrante, um conjunto mais adequado ao calor soteropolitano capaz de resistir até à potência máxima do ar-condicionado que atendia àquela saleta próxima à recepção no hotel em que o roqueiro e sua banda estavam hospedados. Um hotel de categoria, na orla da cidade, bem diferente das posadas ou apartamentos emprestados nos quais eles ficavam até poucos anos atrás, entre uma apresentação ou outra pelo país ou mesmo durante os festivais fora do Brasil nos quais eles abriam shows de artistas bem mais conhecidos.
Bebendo uma garrafa de cerveja atrás da outra desde que chegara à Bahia, ainda na madrugada daquele sábado, o líder da Traumatismo Craniano olhava a sua réplica sem demonstrar interesse. Afinal, para ele o boneco não era mais novidade. Desde que assinou o contrato com a atual gravadora, a gigante alemã Nuclear Blast, artigos licenciados eram lançados regularmente. Por onde quer que passe com as turnês da banda, no Brasil ou no exterior, lojas especializadas se enchiam com exemplares da figura e, em alguns lugares, até alguns camelôs vendiam cópias pirateadas feitas de material inferior e com pintura irregular. Ele mesmo encontrou várias réplicas ilegais nas proximidades da Galeria do Rock, na manhã anterior, quando foi dar uma de suas raras entrevistas para uma rádio paulistana, antes de pegar o avião rumo ao Nordeste.
Não era o caso daquela ali, de pé sobre a mesa. Claramente diante dele estava uma representante da versão de luxo, aquela que vem em uma cartela marcada com um “Collector’s Edition” escrito com letras escarlates. Foram poucos os exemplares do tipo postos à venda. A figura era disputada em leilões virtuais, alcançando boas ofertas dos mais entusiasmados, principalmente se o item ainda estivesse na embalagem, intocado, e se ela viesse personalizada com algum garrancho do rapaz. Era essa a suspeita de Vaso Ruim, apesar de a peça em questão estar fora do altar fetichista de plástico e papelão, tão importante para colecionadores radicais. O homem que entrou para conversar naquela sala e se sentou diante dele deveria ser um desses caçadores de autógrafos, prontos para aproveitar uma oportunidade de valorizar o produto antes de lançá-lo no eBay e faturar alguns dólares, libras ou ienes na operação.
2 comentários:
Gostei muito do começo do conto!
A ambientação do roqueiro vendo sua Action Figurew ficou demais!!
Meus parabéns e boa sorte na Antologia!!
Brigadão, boa sorte, também ;-)
Assim que o TheWiFi liberar, quero publicar aqui algumas imagens do roqueiro e de seu algoz, pra HQ que estamos planejando
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