Dos submarinos às viagens espaciais, Jules Verne ficou conhecido como um dos pais da moderna ficção científica e por ser um verdadeiro profeta das tecnologias que se tornaram possíveis muitos anos após sua morte. De la Terre à la Lune é uma de suas obras mais consagradas justamente pela quantidade de antecipações que ele fez em relação ao primeiro voo tripulado rumo à Lua no projeto Apolo. Do local de lançamento, na Flórida, ao número de astronautas à bordo, três em ambos os casos, passando pelas dimensões da cápsula espacial, o escritor francês parece ter previsto com riqueza de detalhes eventos que só ocorreriam um século depois de ele os ter escrito.
Porém, uma das decisões mais criticadas posteriormente foi o fato de ele ter escolhido como meio de lançamento não um foguete, como ocorreu na realidade, mas sim um supercanhão. Os especialistas lembram que um projétil lançado por uma arma como a mostrada no livro de 1865 jamais poderia ser tripulado, pois as forças de aceleração esmagariam qualquer ser humano no interior daquela bala espacial. Mesmo assim, neste aparente erro nas profecias vernianas, houve um outro caso de antecipação tão ou mais impressionante que os do projeto Apolo. A coincidência foi lembrada em um documentário produzido pelo canal a cabo Discovery Channel chamado Visionários, que enfatizou a importância de Jules Verne e de seu colega inglês, H. G. Wells, para a FC e a capacidade da dupla em se antecipar à realidade. O trecho pode ser visto aqui.
O documentário mostra que a ideia do fictício Impey Barbicane inspirou um engenheiro canadense chamado Gerald Vincent Bull (1928-90) a tentar mandar satélites artificiais para a órbita terrestre lançados por canhões. A inspiração surgiu em 1963 e foi posta em prática exatamente 100 anos depois da publicação do livro. Bull soldou várias peças de armas navais e conseguiu construir uma arma, com apoio do Canadá e dos EUA, que, apesar de ter apenas uma fração do comprimento da imaginada por Verne (o Columbiad tinha mais de 280 metros, a do canadense, 53), lançou sua carga a uma altura de 180 quilômetro, mais da metade do necessário para se alcançar o objetivo.
Infelizmente, os planos de Bull se tornaram caros demais e ele perdeu financiamento no ocidente. O engenheiro acabou a carreira trabalhando para o governo de Saddam Hussein (1937-2006), no Iraque, onde fez parte do Projeto Babylon, um novo supercanhão com fins teoricamente pacifistas. Ele acabou assassinado por um pistoleiro no país que havia adotado para viver, a Bélgica. Quatro anos depois de sua morte, o escritor britânico Frederick Forsyth lançou um livro chamado Fist of God especulando sobre o alcance bélico das invenções de Bull nos bastidores da segunda guerra do Golfo, para a libertação do emirado do Kuwait (1991). Nessa obra, os planos de exploração espacial de Bull são a base de uma arma mortal conhecida como Punho de Deus.
E assim, cumpriu-se um curioso ciclo. Uma ideia que nasceu para a ficção declaradamente antibelicista de Jules Verne inspirou a vida real na forma dos projetos de Gerald Bull e voltou para as páginas da ficção, desta vez na forma do thriller de guerra e de espionagem de Frederick Forsyth. Entre Barbicane e Bull, entre o Columbiad e o Punho de Deus, entre Verne e Forsyth, existe uma lição que podemos aprender sobre como algumas boas intenções podem se perder no caminho e se transformar em algo bem mais perigoso.
28.1.09
Supercanhões pacifistas
"...Trinta e oito! Trinta e nove! Quarenta! Fogo! "
Com vocês, mais uma imagem de Henri Montaut para o livro De la Terre à la Lune. Esta ilustra o momento do lançamento do projétil Lunar e dá uma ideia do poder de fogo daquele que era o maior canhão já construído em todos os tempos.
Trechos do texto de Jules Verne dão conta da importância que teve tal evento não só para os Estados Unidos, mas para todo o mundo:
Será que o Barão de Mauá, sendo um dos principais investidores do projeto, também estava por lá, como um daqueles banqueiros citados entre os representantes de todos os povos da Terra? Provavelmente, sim, certo?
Mais um pouco de Jules Verne e o disparo do Columbiad, que, ao contrário do que nos acostumamos a ouvir nas missões espaciais da realidade, não foi precedido por uma contagem regressiva:
A noveleta "Cidade Phantástica" também se passa entre essas duas datas, ao mesmo tempo em que o mundo se preparava para testemunhar aquele feito histórico na Flórida.
Trechos do texto de Jules Verne dão conta da importância que teve tal evento não só para os Estados Unidos, mas para todo o mundo:
Todos os povos da Terra ali tinham os seus representantes; todos os dialetos do Mundo se falavam ali ao mesmo tempo. Dir-se-ia a confusão das línguas, como nos tempos bíblicos da Torre de Babel. Ali, as diversas classes da sociedade americana confundiam-se numa igualdade absoluta.
Banqueiros, lavradores, marinheiros, moços de recados, plantadores de algodão, negociantes, barqueiros, magistrados, acotovelavam - se numa sem-cerimônia primitiva.
Será que o Barão de Mauá, sendo um dos principais investidores do projeto, também estava por lá, como um daqueles banqueiros citados entre os representantes de todos os povos da Terra? Provavelmente, sim, certo?
Mais um pouco de Jules Verne e o disparo do Columbiad, que, ao contrário do que nos acostumamos a ouvir nas missões espaciais da realidade, não foi precedido por uma contagem regressiva:
Faltavam apenas quarenta segundos para o momento da partida, e cada segundo parecia durar um século.Era o dia primeiro de dezembro, Verne não deixou claro de que ano, só sabemos que a história do livro começa no ano anterior, pouco após o fim da Guerra Civil americana concluída em 1865. Provavelmente, o feito histórico aconteceu entre a publicação daquele livro e a de sua continuação direta, Autor de la Lune, de 1869, na qual finalmente os leitores ficaram sabendo do destino dos três viajantes, Impey Barbicane, Capitão Nicholl e Michel Ardan.
Ao vigésimo, houve um frêmito geral e ocorreu à multidão que os viajantes encerrados no projétil contavam também esses terríveis. segundos! Gritos isolados ouviram-se: - Trinta e cinco! Trinta e seis! Trinta e sete! Trinta e oito! Trinta e nove! Quarenta! Fogo! Imediatamente, Murchison, premindo o interruptor do aparelho, restabeleceu a ligação e lançou a faísca elétrica para o fundo do columbiad.
Uma detonação espantosa, inaudita, sobre-humana, de que nada poderia dar uma idéia, nem o ribombar do trovão, nem o estrondo das erupções, produziu-se instantaneamente, Um imenso feixe luminoso saiu das entranhas do solo como de uma cratera. A terra tremeu, e algumas pessoas mal puderam ver por instantes o projétil cortando vitoriosamente o ar por entre vapores chamejantes.
A noveleta "Cidade Phantástica" também se passa entre essas duas datas, ao mesmo tempo em que o mundo se preparava para testemunhar aquele feito histórico na Flórida.
26.1.09
Os artilheiros do Clube do Canhão
No post abaixo comentamos sobre uma organização fictícia criada por Jules Verne para uma de suas obras mais conhecidas, De la Terre à la Lune: o Gun Club de Baltimore. Reunindo 1.803 sócios efetivos e 30.575 sócios correspondentes, o clube foi fundado durante a Guerra da Secessão e dele só poderiam participar americanos que tivessem inventado, ou ao menos aperfeiçoado, algum tipo de armamento, preferencialmente canhões.
Publicado primeiramente na forma de artigos de jornal e mais tarde compilado em livro, o texto de Verne recebeu uma tradução na forma de imagens feitas pelo também francês Henri Montaut, de quem nos apropriamos de uma das ilustrações para o post "Coração do meu Brasil". Lá está representado o local de construção do canhão Columbiad, responsável pelo lançamento daquele imaginário projétil para a Lua. O lugar escolhido por Verne foi a Colina das Pedras, em Tampa, na Flórida, poucos quilômetros distante do Cabo Canaveral, de onde partiria décadas depois da estreia do livro a verdadeira primeira missão espacial rumo à Lua.
Neste post, aqui em cima, vemos a versão de Montaut para alguns dos mais proeminentes membros do Gun Club, na cena que abre o livro. Em uma sala toda decorada com armas nas paredes, podemos ver de pé o Coronel Blomsberry, um militar que perdeu ambas as mãos em batalha e que tenta convencer os demais a levar o conhecimento de balística dos americanos para as guerras da Europa; sentados, vemos Tom Hunter, carbonizando suas pernas de pau no calor da lareira; de costas para nós, o veterano Bilsby, que perdeu os dentes servindo ao general Sherman; e com seu gancho de ferro no lugar da mão, o secretário J.T. Maston, fiel escudeiro do presidente Barbicane, idealizador da viagem à Lua.
Para quem estranhar a quantidade de membros e demais partes do corpo perdidos entre essas pessoas, Jules Verne citou uma estatística relacionada aos integrantes daquela organização:
Publicado primeiramente na forma de artigos de jornal e mais tarde compilado em livro, o texto de Verne recebeu uma tradução na forma de imagens feitas pelo também francês Henri Montaut, de quem nos apropriamos de uma das ilustrações para o post "Coração do meu Brasil". Lá está representado o local de construção do canhão Columbiad, responsável pelo lançamento daquele imaginário projétil para a Lua. O lugar escolhido por Verne foi a Colina das Pedras, em Tampa, na Flórida, poucos quilômetros distante do Cabo Canaveral, de onde partiria décadas depois da estreia do livro a verdadeira primeira missão espacial rumo à Lua.
Neste post, aqui em cima, vemos a versão de Montaut para alguns dos mais proeminentes membros do Gun Club, na cena que abre o livro. Em uma sala toda decorada com armas nas paredes, podemos ver de pé o Coronel Blomsberry, um militar que perdeu ambas as mãos em batalha e que tenta convencer os demais a levar o conhecimento de balística dos americanos para as guerras da Europa; sentados, vemos Tom Hunter, carbonizando suas pernas de pau no calor da lareira; de costas para nós, o veterano Bilsby, que perdeu os dentes servindo ao general Sherman; e com seu gancho de ferro no lugar da mão, o secretário J.T. Maston, fiel escudeiro do presidente Barbicane, idealizador da viagem à Lua.
Para quem estranhar a quantidade de membros e demais partes do corpo perdidos entre essas pessoas, Jules Verne citou uma estatística relacionada aos integrantes daquela organização:
Daqueles que voltaram, a maior parte ostentava honrosos sinais da sua indiscutível intrepidez: muletas, pernas de pau, braços artificiais, mãos artificiais, maxilares de borracha, crânios de prata, narizes de platina, nada faltava à coleção, e Pitcaim chegou mesmo a calcular igualmente que no Clube do Canhão não chegava a haver um braço para quatro pessoas, e apenas duas pernas para seis.
24.1.09
Investidor do espaço
Bem poucas pessoas conhecem a biografia de Irineu Evangelista de Souza, pelo menos pelo nome verdadeiro e completo dele. Mas quem nunca ouviu falar do Barão, e mais tarde Visconde, de Mauá? Instalado na capital do Império, esse gaúcho de Arroio Grande se tornou a principal força capitalista e liberal em um país ainda escravocrata e cartorialista.
Mesmo com pouco vento a favor, ele deixou a infância de órfão pobre para trás e foi abrindo caminho primeiro no comércio, em seguida na indústria, na política e no mundo das finanças. Chegou a ser dono de 17 empresas com filiais em seis países o que lhe garantiu respeito no mundo inteiro. Uma prova desse recnhecimento está impressa no livro De la Terre à la Lune, escrito em 1865 por Jules Verne (1828-1905).
Naquela obra, o autor francês imagina um feito sem precedentes que passaria a ocupar a mente e o tempo ocioso dos engenheiros bélicos americanos, reunidos no fictício Gun Club, entediados após o fim da Guerra Civil que dividiu o país. O projeto encabeçado pelo presidente daquele clube era uma ambiciosa odisséia rumo à Lua: um projétil disparado por um gigantesco canhão deveria levar três voluntários a nosso satélite natural.
A certa altura do folhetim, após realizar os cálculos do projeto, medidas tanto do projétil quanto do canhão disparador, material a ser empregado, data para o lançamento, tudo enfim, Verne passa a imaginar uma lista de investidores internacionais com capital suficiente para bancar tal aventura. O resultado pode ser lido a seguir:
Sim, em três capitais da América Latina, uma certa casa de nome Banque Mauá. Por trás delas, estava o brasileiro, que na vida real se associou a financistas ingleses e abriu filiais ainda na Europa, como Londres e Paris, e nos Estados Unidos, onde operava com o nome Banco Mauá, Mac Gregor & Cia.
Nesta mesma vida real, Mauá trouxe o progresso a vapor a nosso país. O título de Barão veio em 30 de abril de 1854 e não trazia em seu brasão a imagem de uma locomotiva por mera questão de gosto. Foi naquele mesmo mês e ano que o gaúcho inaugurou a primeira ferrovia brasileira, 14 km de trilhos unindo o Porto da Estrela, na baía de Guanabara, à estação de Fragoso, na raiz da Serra da Estrela. Foi ainda em 1854 que ele também fundou o estabelecimento responsável pela iluminação a gás no Rio de Janeiro, o que serviu para aposentar os antigos lampiões alimentados com óleo de baleia e dar um ar moderno à capital de um Império. Muitos dos investimentos que ele captou vinham da economia que representou aos cofres públicos a proibição do tráfico internacional de escravos, em 1850.
Porém a lista de proezas não para por aí, ele criou a primeira indústria moderna do país, com a fábrica na Ponta da Areia, em Niterói, onde, no primeiro ano de funcionamento, mil operários produziam tubos para encanamento de água, guindastes, prensas, engenhos de açúcar e, principalmente, navios. Investiu ainda na navegação a vapor no Amazonas, em uma época em que se começava a insinuar a necessidade de internacionalização daquela selva. Continuou a financiar novas estradas de ferro, além daquela pioneira, como a D. Pedro II, atual Central do Brasil; a Recife-São Francisco, em Pernambuco; Bahia-São Francisco, na Bahia; a ferrovia de Santos a Jundiaí, em São Paulo.
Tudo isso e muito mais, em um país que não era de todo simpático a suas ideias republicanas, abolicionistas e progressistas. Os interesses contrariados de setores escravistas, sabotagens de concorrentes estrangeiros e a crise econômica provocada pela dispendiosa Guerra do Paraguai foram as principais causas da decadência do empresário, que acabou por pedir moratória em 1873. Mas o que aconteceria se a realidade fosse outra? Se os projetos do Barão de Mauá fossem ainda mais incentivados pelo imperador? Se ele conseguisse influenciar o governo para ir além em suas medidas pelo fim da escravidão e por negociações mais pragmáticas com os países vizinhos, transformando potenciais inimigos em parceiros comerciais? E ainda, e se as ligações imaginadas por Verne entre Mauá e os engenheiros do Gun Club fossem realidade? Que tipo de mundo seria esse?
Mesmo com pouco vento a favor, ele deixou a infância de órfão pobre para trás e foi abrindo caminho primeiro no comércio, em seguida na indústria, na política e no mundo das finanças. Chegou a ser dono de 17 empresas com filiais em seis países o que lhe garantiu respeito no mundo inteiro. Uma prova desse recnhecimento está impressa no livro De la Terre à la Lune, escrito em 1865 por Jules Verne (1828-1905).
Naquela obra, o autor francês imagina um feito sem precedentes que passaria a ocupar a mente e o tempo ocioso dos engenheiros bélicos americanos, reunidos no fictício Gun Club, entediados após o fim da Guerra Civil que dividiu o país. O projeto encabeçado pelo presidente daquele clube era uma ambiciosa odisséia rumo à Lua: um projétil disparado por um gigantesco canhão deveria levar três voluntários a nosso satélite natural.
A certa altura do folhetim, após realizar os cálculos do projeto, medidas tanto do projétil quanto do canhão disparador, material a ser empregado, data para o lançamento, tudo enfim, Verne passa a imaginar uma lista de investidores internacionais com capital suficiente para bancar tal aventura. O resultado pode ser lido a seguir:
A Vienne, chez S.-M. de Rothschild ;
A Pétersbourg, chez Stieglitz et Ce ;
A Paris, au Crédit mobilier ;
A Stockholm, chez Tottie et Arfuredson ;
A Londres, chez N.-M. de Rothschild et fils ;
A Turin, chez Ardouin et Ce ;
A Berlin, chez Mendelssohn ;
A Genève, chez Lombard, Odier et Ce ;
A Constantinople, à la Banque Ottomane ;
A Bruxelles, chez S. Lambert ;
A Madrid, chez Daniel Weisweller ;
A Amsterdam, au Crédit Néerlandais ;
A Rome, chez Torlonia et Ce ;
A Lisbonne, chez Lecesne ;
A Copenhague, à la Banque privée ;
A Buenos Aires, à la Banque Maua ;
A Rio de Janeiro, même maison ;
A Montevideo, même maison ;
A Valparaiso, chez Thomas La Chambre et Ce ;
A Mexico, chez Martin Daran et Ce ;
A Lima, chez Thomas La Chambre et Ce.
Sim, em três capitais da América Latina, uma certa casa de nome Banque Mauá. Por trás delas, estava o brasileiro, que na vida real se associou a financistas ingleses e abriu filiais ainda na Europa, como Londres e Paris, e nos Estados Unidos, onde operava com o nome Banco Mauá, Mac Gregor & Cia.
Nesta mesma vida real, Mauá trouxe o progresso a vapor a nosso país. O título de Barão veio em 30 de abril de 1854 e não trazia em seu brasão a imagem de uma locomotiva por mera questão de gosto. Foi naquele mesmo mês e ano que o gaúcho inaugurou a primeira ferrovia brasileira, 14 km de trilhos unindo o Porto da Estrela, na baía de Guanabara, à estação de Fragoso, na raiz da Serra da Estrela. Foi ainda em 1854 que ele também fundou o estabelecimento responsável pela iluminação a gás no Rio de Janeiro, o que serviu para aposentar os antigos lampiões alimentados com óleo de baleia e dar um ar moderno à capital de um Império. Muitos dos investimentos que ele captou vinham da economia que representou aos cofres públicos a proibição do tráfico internacional de escravos, em 1850.
Porém a lista de proezas não para por aí, ele criou a primeira indústria moderna do país, com a fábrica na Ponta da Areia, em Niterói, onde, no primeiro ano de funcionamento, mil operários produziam tubos para encanamento de água, guindastes, prensas, engenhos de açúcar e, principalmente, navios. Investiu ainda na navegação a vapor no Amazonas, em uma época em que se começava a insinuar a necessidade de internacionalização daquela selva. Continuou a financiar novas estradas de ferro, além daquela pioneira, como a D. Pedro II, atual Central do Brasil; a Recife-São Francisco, em Pernambuco; Bahia-São Francisco, na Bahia; a ferrovia de Santos a Jundiaí, em São Paulo.
Tudo isso e muito mais, em um país que não era de todo simpático a suas ideias republicanas, abolicionistas e progressistas. Os interesses contrariados de setores escravistas, sabotagens de concorrentes estrangeiros e a crise econômica provocada pela dispendiosa Guerra do Paraguai foram as principais causas da decadência do empresário, que acabou por pedir moratória em 1873. Mas o que aconteceria se a realidade fosse outra? Se os projetos do Barão de Mauá fossem ainda mais incentivados pelo imperador? Se ele conseguisse influenciar o governo para ir além em suas medidas pelo fim da escravidão e por negociações mais pragmáticas com os países vizinhos, transformando potenciais inimigos em parceiros comerciais? E ainda, e se as ligações imaginadas por Verne entre Mauá e os engenheiros do Gun Club fossem realidade? Que tipo de mundo seria esse?
22.1.09
Polícia do quê?
— Está tudo bem, agora, sou da Polícia dos Caminhos de Ferro e a situação está sob controle.
Pode até parecer, mas essa força policial não é somente uma invenção para o universo ficcional de Cidade Phantástica. Polícia dos Caminhos de Ferro foi realmente o nome da primeira corporação de segurança especializada do Brasil, criada antes mesmo da inauguração de alguma estrada de ferro no país.
D. Pedro II fundou a instituição por força de um decreto régio em julho de 1852. Apenas dois anos depois, em abril de 1854, terminou a construção da ferrovia por onde circulou a locomotiva número um do Brasil, a Baroneza (conforme grafia da época), apelido recebido para homenagear a esposa do Barão de Mauá.
Em mais de 150 anos de história, a denominação foi se alterando sucessivamente. Primeiro para Polícia e Segurança das Estradas de Ferro; em seguida, veio Guarda Civil Ferroviária; por último, temos o nome atual e que aparece no distintivo à direita, Polícia Ferroviária Federal.
Em todo esse tempo, a tropa sempre teve a missão de proteger tanto os passageiros quanto as mercadorias que circulam pelos trens brasileiros, bem como cuidar da infraestrutura ferroviária nacional.
Porém, se a antiga Polícia dos Caminhos de Ferro nasceu com um ar de pionerismo e com um nome de batismo tão poético, a realidade de hoje é bem mais dura. A corporação pode ser considerada um símbolo do descaso de nosso país em relação às ferrovias, abandonadas pela prioridade que se passou a dar às rodovias. Tanto que já chegou a ser considerada a menor força policial do mundo. Atualmente, menos de mil agentes acumulam a responsabilidade de zelar pelos quase trinta mil quilômetros de trilhos espalhados pelo território nacional.
Pode até parecer, mas essa força policial não é somente uma invenção para o universo ficcional de Cidade Phantástica. Polícia dos Caminhos de Ferro foi realmente o nome da primeira corporação de segurança especializada do Brasil, criada antes mesmo da inauguração de alguma estrada de ferro no país.
D. Pedro II fundou a instituição por força de um decreto régio em julho de 1852. Apenas dois anos depois, em abril de 1854, terminou a construção da ferrovia por onde circulou a locomotiva número um do Brasil, a Baroneza (conforme grafia da época), apelido recebido para homenagear a esposa do Barão de Mauá.
Em mais de 150 anos de história, a denominação foi se alterando sucessivamente. Primeiro para Polícia e Segurança das Estradas de Ferro; em seguida, veio Guarda Civil Ferroviária; por último, temos o nome atual e que aparece no distintivo à direita, Polícia Ferroviária Federal.
Em todo esse tempo, a tropa sempre teve a missão de proteger tanto os passageiros quanto as mercadorias que circulam pelos trens brasileiros, bem como cuidar da infraestrutura ferroviária nacional.
Porém, se a antiga Polícia dos Caminhos de Ferro nasceu com um ar de pionerismo e com um nome de batismo tão poético, a realidade de hoje é bem mais dura. A corporação pode ser considerada um símbolo do descaso de nosso país em relação às ferrovias, abandonadas pela prioridade que se passou a dar às rodovias. Tanto que já chegou a ser considerada a menor força policial do mundo. Atualmente, menos de mil agentes acumulam a responsabilidade de zelar pelos quase trinta mil quilômetros de trilhos espalhados pelo território nacional.
19.1.09
E o punk virou malta...
Malta do vapor!? Que diabos de tradução livre para steampunk é esta?
Malta, no século XIX, era o nome que se dava aos grupos de capoeiristas que aterrorizavam a população do Rio de Janeiro. Tanto que desde a década de 1820 foram sendo criadas medidas e leis para se proibir a prática e castigar os grupos que insistiam em levar aquela forma de luta para as ruas da cidade.
As maltas reuniam negros alforriados, mulatos e até brancos. Como acontece hoje com os bondes, cada comunidade do Rio contava com um bando de capoeiristas que defendiam as cores de seu grupo e rivalizavam com os da vizinhança. Apesar de a maioria não andar com armas de fogo, os golpes e as lâminas escondidas eram suficiente para muitos destes enfrentamentos acabarem em morte.
Odiados pelas autoridades e temidos pela população, o termo carrega bastante do sentido que o sufixo punk - que não é apenas "vagabundo" - representa no nome deste gênero da ficção científica. As maltas apesar de toda a carga negativa eram de certa forma respeitadas pelo seu potencial de periculosidade. Tanto que, durante a Guerra do Paraguai, milhares de capoeiristas foram convocados para participar das batalhas em troca da liberdade. Existe ainda a lenda que o próprio D. Pedro II usava os serviços de um capoeira em sua segurança pessoal. Mesmo assim, a luta continuou sendo mal vista pela sociedade. No período republicano a repressão até aumentou: um decreto do presidente Deodoro da Fonseca, de 1890. tornou a prática um crime.
Neste mundo fictício, em que não houve tal guerra e em que a escravatura foi abolida quase quarenta anos antes que em nossa realidade, a capoeira continuou sendo um meio de ataque e de defesa muito utilizado, da mesma forma que organização dos lutadores em grupos se manteve uma forma de resistência bastante empregada. Mais que isso, os órgãos de repressão viram surgir, em meados do século XIX, uma nova classe de maltas, formada justamente pelos migrantes que ocuparam o lugar dos escravos negros na construção das estradas de ferro.
Como ocorreu nos Estados Unidos, chineses vieram em massa ao Brasil trabalhar na implantação da infraestrutura ferroviária, com salários inferiores aos de operários europeus - durante as obras da ferrovia Transcontinental daquele país, um irlandês recebia em torno de trinta dólares por mês, dez por cento a mais que um asiático. Por ser uma atividade que ocupa milhares de pessoas ao longo de um tempo, mas não garante a permanência dos postos de trabalho, muitos chineses imitaram os negros, por quem eram francamente hostilizados, e se organizaram em gangues. Em uma sociedade que, apesar de seus avanços, continuaria a ser radicalmente racista, o termo malta serviria a eles, os amarelos, da mesma forma que servira para designar os negros. Um fenômeno de apropriação semelhante ao que levava os europeus recém-chegados a chamar os indígenas de "negros da terra".
Então, nesta linha temporal alternativa, maltas de capoeiristas e de lutadores de kung fu se enfrentam nas ruas da Cidade Phantástica justificando o punk deste mundo movido a vapor.
Malta, no século XIX, era o nome que se dava aos grupos de capoeiristas que aterrorizavam a população do Rio de Janeiro. Tanto que desde a década de 1820 foram sendo criadas medidas e leis para se proibir a prática e castigar os grupos que insistiam em levar aquela forma de luta para as ruas da cidade.
As maltas reuniam negros alforriados, mulatos e até brancos. Como acontece hoje com os bondes, cada comunidade do Rio contava com um bando de capoeiristas que defendiam as cores de seu grupo e rivalizavam com os da vizinhança. Apesar de a maioria não andar com armas de fogo, os golpes e as lâminas escondidas eram suficiente para muitos destes enfrentamentos acabarem em morte.
Odiados pelas autoridades e temidos pela população, o termo carrega bastante do sentido que o sufixo punk - que não é apenas "vagabundo" - representa no nome deste gênero da ficção científica. As maltas apesar de toda a carga negativa eram de certa forma respeitadas pelo seu potencial de periculosidade. Tanto que, durante a Guerra do Paraguai, milhares de capoeiristas foram convocados para participar das batalhas em troca da liberdade. Existe ainda a lenda que o próprio D. Pedro II usava os serviços de um capoeira em sua segurança pessoal. Mesmo assim, a luta continuou sendo mal vista pela sociedade. No período republicano a repressão até aumentou: um decreto do presidente Deodoro da Fonseca, de 1890. tornou a prática um crime.
Neste mundo fictício, em que não houve tal guerra e em que a escravatura foi abolida quase quarenta anos antes que em nossa realidade, a capoeira continuou sendo um meio de ataque e de defesa muito utilizado, da mesma forma que organização dos lutadores em grupos se manteve uma forma de resistência bastante empregada. Mais que isso, os órgãos de repressão viram surgir, em meados do século XIX, uma nova classe de maltas, formada justamente pelos migrantes que ocuparam o lugar dos escravos negros na construção das estradas de ferro.
Como ocorreu nos Estados Unidos, chineses vieram em massa ao Brasil trabalhar na implantação da infraestrutura ferroviária, com salários inferiores aos de operários europeus - durante as obras da ferrovia Transcontinental daquele país, um irlandês recebia em torno de trinta dólares por mês, dez por cento a mais que um asiático. Por ser uma atividade que ocupa milhares de pessoas ao longo de um tempo, mas não garante a permanência dos postos de trabalho, muitos chineses imitaram os negros, por quem eram francamente hostilizados, e se organizaram em gangues. Em uma sociedade que, apesar de seus avanços, continuaria a ser radicalmente racista, o termo malta serviria a eles, os amarelos, da mesma forma que servira para designar os negros. Um fenômeno de apropriação semelhante ao que levava os europeus recém-chegados a chamar os indígenas de "negros da terra".
Então, nesta linha temporal alternativa, maltas de capoeiristas e de lutadores de kung fu se enfrentam nas ruas da Cidade Phantástica justificando o punk deste mundo movido a vapor.
17.1.09
Coração do meu Brasil
O post abaixo deste é a primeira parte de uma noveleta steampunk que estou escrevendo, gênero caracterizado pela existência de tecnologias imaginárias na Era Vitoriana (1837-1901), o auge da Revolução Industrial.
Normalmente, um texto do tipo parte do pressuposto de algum ponto de divergência entre a nossa história e a do universo ficcional em questão. Um exemplo é o livro The difference engine, de 1990, escrito a quatro mãos pelos criadores do movimento cyberpunk Willian Gibson e Bruce Sterling. Na obra, a hipótese de partida é que o cientista e matemático inglês Charles Babbage (1791-1871) teria construído uma máquina (que chegou mesmo a projetar) : o primeiro computador do mundo, baseado apenas em peças mecânicas.
Em "Cidade Phantástica" o ponto de mudança imaginado ocorre nas decisões tomadas por D. Pedro II (1825-91). Aconselhado por um consórcio de empresários, liderado por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá (1813-89), o Imperador dos Trópicos assume um governo muito mais pragmático e liberal que o de nossa realidade, costurando acordos de paz com os países vizinhos, principalmente o Paraguai, que se torna nosso maior aliado no continente, evitando a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70). Além disso, neste mundo, a abolição da escravatura ocorreu bem antes, por volta de 1850, quando em nossa linha do tempo de fato ocorreu apenas a proibição do tráfico de negros vindos da África, graças a lei Eusébio de Queirós.
Os reflexos dessas medidas podem ser sentidos em um país muito mais industrializado que o nosso, com estradas de ferro ligando todos os extremos do território nacional. Investimentos de companhias internacionais e massas de imigrantes também foram atraídos de maneira muito mais aguda, uma vez que tanto a Europa quanto os Estados Unidos permaneceram envolvidos em conflitos armados naquele período (um exemplo é a Guerra da Secessão dos EUA, que durou de 1861 a 1865). Boa parte da ação se passa na capital do Império, São Sebastião do Rio de Janeiro, a Cidade Phantástica do título, local que se tornou a maior metrópole do continente.
Além de alterações em episódios históricos, a noveleta também conta com a participação de vários personagens de obras nacionais e estrangeiras que caíram em domínio público. Conforme o texto for avançando, devo postar mais alguns detalhes por aqui.
Obrigado pela leitura.
Normalmente, um texto do tipo parte do pressuposto de algum ponto de divergência entre a nossa história e a do universo ficcional em questão. Um exemplo é o livro The difference engine, de 1990, escrito a quatro mãos pelos criadores do movimento cyberpunk Willian Gibson e Bruce Sterling. Na obra, a hipótese de partida é que o cientista e matemático inglês Charles Babbage (1791-1871) teria construído uma máquina (que chegou mesmo a projetar) : o primeiro computador do mundo, baseado apenas em peças mecânicas.
Em "Cidade Phantástica" o ponto de mudança imaginado ocorre nas decisões tomadas por D. Pedro II (1825-91). Aconselhado por um consórcio de empresários, liderado por Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá (1813-89), o Imperador dos Trópicos assume um governo muito mais pragmático e liberal que o de nossa realidade, costurando acordos de paz com os países vizinhos, principalmente o Paraguai, que se torna nosso maior aliado no continente, evitando a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70). Além disso, neste mundo, a abolição da escravatura ocorreu bem antes, por volta de 1850, quando em nossa linha do tempo de fato ocorreu apenas a proibição do tráfico de negros vindos da África, graças a lei Eusébio de Queirós.
Os reflexos dessas medidas podem ser sentidos em um país muito mais industrializado que o nosso, com estradas de ferro ligando todos os extremos do território nacional. Investimentos de companhias internacionais e massas de imigrantes também foram atraídos de maneira muito mais aguda, uma vez que tanto a Europa quanto os Estados Unidos permaneceram envolvidos em conflitos armados naquele período (um exemplo é a Guerra da Secessão dos EUA, que durou de 1861 a 1865). Boa parte da ação se passa na capital do Império, São Sebastião do Rio de Janeiro, a Cidade Phantástica do título, local que se tornou a maior metrópole do continente.
Além de alterações em episódios históricos, a noveleta também conta com a participação de vários personagens de obras nacionais e estrangeiras que caíram em domínio público. Conforme o texto for avançando, devo postar mais alguns detalhes por aqui.
Obrigado pela leitura.
A Malta do Vapor
Estrada de Ferro Gibson-Mauá que liga Manaus a Rio de Janeiro. Interior do vagão-restaurante do trem puxado pelo Barão, a mais moderna locomotiva do mundo.
— Que ninguém se mova ou vamos atirar para matar! Somos a Malta do Vapor e não temos medo de nos sujar com o sangue de vocês!
Os quatro homens levantam-se ao mesmo tempo de seus lugares na cabine, provocando pânico entre as pessoas bem vestidas que trocam o lento e monótono mastigar de suas refeições por gritos e choramingos. Um ou outro palavrão é entreouvido. Até aquele momento, desde que embarcou no penúltimo ponto antes da parada final, o quarteto anunciado como sendo o mais perigoso grupo de assaltantes de trens que já houve viajava de forma discreta; um integrante em cada extremidade do carro, nas mesas dos dois lados do corredor. Com disciplina marcial, sacam armas e erguem lenços para servir de máscaras dificultando o reconhecimento de suas identidades. O líder dos bandoleiros dá as ordens, primeiro para o parceiro à sua direita, depois para os outros à sua frente.
— Você, venha comigo, vamos revistar os homens. Os dois aí procurem a bugra. E todo mundo quieto! Fechem a boca agora ou vamos fechar por vocês! Último aviso.
Ele e sua sombra executam os mesmos movimentos de apalpar paletós com uma mão enquanto seguram pistolas com a outra. Não hesitam em dar tapas, socos e bofetões em quem não colabora com a revista forçada. Do outro lado, um dos mascarados segura um cartaz com a foto de uma jovem, com a qual vai comparando ao rosto de cada uma das mulheres a bordo. Eles também são violentos, arrancam chapéus caríssimos e seguram as mais chorosas pelo queixo para garantir uma boa visão da aparência delas.
O líder termina de examinar os bolsos de alguém quando desconfia de um sujeito que ocupa sozinho uma mesa de canto, encostado à janela aberta no fundo do vagão. O homem está com a cabeça baixa, chapéu impedindo que se veja sua cara. A roupa é toda de um cinza muito escuro, cor de fuligem, casacão, camisa, calças e botas, apesar do calor de fim de novembro transformar os arredores do Rio de Janeiro em uma fornalha faiscante.
— Deixa as mãos longe dos talheres e olha pra mim, magricelo — A arma é erguida a dois palmos da cabeça que se levanta devagar, um desafio evidente à paciência do interlocutor.
— Satisfeito? — Por fim ele encara o mascarado, olhando-o com desprezo. O rosto é quadrado e uma barba de três ou quatro dias o deixa com aparência tão cinzenta quanto o figurino que usa. Pela falta de rugas, passaria por uns vinte anos, não fossem fios brancos nos cabelos — mais compridos que o costume da época determina — a lhe darem o último toque cinza-grisalho que faltava ao conjunto.
A resposta vem na forma de uma coronhada no queixo, seguido de um empurrão que esfrega seu rosto contra o vidro da janela veneziana. O atacante sobe no banco duplo e encosta o cano da arma contra as costelas do alvo. O braço livre derruba prato, copo e talheres ao chão e em seguida começa a buscar algo oculto na roupa do desconhecido.
— Você é o tipo de encrenqueiro que estou a procurar, boquirroto! Se eu encontrar alguma coisa suspeita em seus bolsos... vou jogá-lo ainda vivo para fora deste trem.
— Espero que isso não inclua meus charutos — O comentário sai sem fôlego pela pressão do metal nas costas e pela cara ainda espremida contra a grossa vidraça.
De fato, a única coisa além da carteira, um relógio barato e do bilhete de passagem que o agressor encontra nos bolsos dele são dois charutos com nenhum indicativo de qualidade ou de periculosidade. Todos esses pertences são desprezados e o mascarado alivia a pressão, afastando-se um pouco. Ele ainda parece indeciso se deve deixar o homem de cinza vivo. O indicador da mão direita move-se quase imperceptivelmente encostado ao gatilho. Disparar ou não a arma é algo que ocupa seus pensamentos.
— Aqui, encontrei um que carrega um revólver.
Quem fala é o outro responsável pela averiguação da ala masculina. É só isso que faz a decisão ser tomada, a de deixar vivo aquele rapaz acinzentado. Na mesma hora o mascarado-chefe recua dois passos e segue na direção em que está seu comandado.
Um homem, duas mesas atrás, está com braços erguidos, rendido pelo algoz que agora porta duas armas, uma delas exibida de lado para o líder do bando.
— Um colt? Arma americana? Não é o padrão deles, mas quem sabe? Há alguma identificação, um distintivo?
— Não. Só a arma — O integrante da Malta do Vapor fala sem tirar os olhos da presa.
— Eu juro que era só para minha defesa pessoal... Não sou quem vocês procuram, seja lá quem for. Sou o coronel Ferreira, de Araruna...
— Não vamos arriscar. Sempre existe um agente deles nestes carros de luxo. Atire —A ordem do líder é dada sem emoção, nem por isso deixa de ser seguida no mesmo instante.
O tiro dado à queima-roupa abre um pequeno rombo na testa do homem, porém estoura a base do crânio na parte de trás. Sangue e miolos grudam na parede, contrastando com a madeira de qualidade, envernizada a ponto de virar espelho. Gritos e choros voltam a ser ouvidos e são silenciados com novos tiros, agora dados pelo líder em direção ao teto, quase acertando as luminárias a gás. Ele olha de canto para o homem de quem havia suspeitado. Não parece mais tão confiante agora, evita encarar e se limita a baixar o rosto em direção às mãos apoiadas na mesa esvaziada.
O corpo sem vida, com seus três olhos bem abertos e desalinhados, desaba ao chão.
Novamente, um dos assaltantes armados dá um aviso. Agora ele parte dos que estavam caçando entre as mulheres. O que fala segura uma jovem pelos cabelos bem ao lado do fotograma estampado no papel erguido pelo camarada.
— Cá está. Temos a rapariga em mãos.
Os olhos da mulher são nada menos que selvagens. Seu rosto tem feições indígenas, acentuadas pelo cabelo de um preto brilhante e muito liso — levemente despenteado pela ausência não-voluntária do chapéu que agora jaz a seus pés — e pelo bronzeado de um vermelho igual brasa recém-acesa, por sua vez realçado pelo vestido branco que usa. Mas mesmo se não fosse o sangue índio a dar tal impressão, o olhar dela não deixaria dúvidas de se tratar de alguém disposto a matar ou morrer. Ela claramente se esforça para não morder, cuspir ou xingar a dupla que aponta pistolas em sua direção.
— Ótimo, não vamos mais nos demorar. Temos ordens de acabar com a mestiça em caso da menor resistência — É o líder da malta quem fala, prestando, como seus comandados, total atenção ao alvo. — Sigamos para render o maquinista, vamos trancar todos aqui...
— Abaixem-se! Você também, garota, para baixo, já!
O aviso é berrado pelo homem acinzentado que, a despeito da rigorosa revista pela qual passara, segura nas mãos um objeto fosco, cuja ponta rebrilha explosões barulhentas.
Mesmo assustada a mulher obedece tão prontamente que muitos fios de sua cabeleira continuam nas mãos do mascarado que a prendia. Ele e o que segurava o papel com a estampa da mulher são varejados por balas antes de reagir: sem soltar gemido, despencam desarticulados contra a parede do carro. Reação mesmo cabe à outra dupla. O que estava mais próximo do estranho de cinza dispara contra ele, obrigando-o a se jogar para baixo da mesa fixada no chão por grandes parafusos. O líder corre na direção oposta.
Protegendo a vista da chuva de lascas de madeira provocada pelas balas inimigas, o único homem armado e sem máscara a bordo daquele carro volta a fazer mira com seu estranho trabuco. Ele acerta disparos contra a perna esquerda e o ombro direito do bandoleiro à sua frente, mesmo assim, indiferente à dor, o sujeito continua a se arrastar. Sempre atirando. O mascarado só para quando são o peito e a cabeça que se tornam alvo dos disparos.
— Venha aqui, mulher. Vou sair deste trem com você viva ou morreremos ambos agora — O líder da Malta do Vapor gruda a mão no pescoço da garota e a suspende do chão como um escudo. — Está a me ouvir, magricelo? Você vai me deixar sair por aquela porta ou eu e esta mulher levaremos chumbo, sim, mas é da minha arma!
Com meio corpo para fora da proteção do tampo da mesa e com o cano de sua arma soltando lufadas fumegantes feito a locomotiva que puxa o vagão onde todos se encontram, o homem de cinza hesita. O próximo passo, entretanto não é dado por ele.
A garota suspensa com facilidade pelo seu raptor ergue o braço direito para trás às cegas. Todos ouvem o disparo de uma pistola, mesmo os passageiros que se encolheram em seus lugares desde que o breve e furioso tiroteio começou. Ninguém entende nada quando quem desmorona para o lado com a cabeça perfurada é o homem que gritava ameaças.
Só quando a jovem deixa cair uma pistola — que recolhera no chão de outro dos seus pretensos captores — é que se percebe que ela não é tão desprotegida quanto aparentava.
— Eu nunca havia dado um tiro antes na minha vida... — A garota fala devagar olhando para a mão com nojo como se tivesse acabado de segurar um animal peçonhento.
— Espero que a senhorita não tenha que se habituar a isso. No mundo em que vivemos, depois que a gente começa é bem difícil parar de atirar — O homem se levanta, olha em torno para os cinco mortos, limpa o sangue que escorre do lábio inferior, onde levou a coronhada, e tenta acalmar os demais passageiros. — Está tudo bem, agora, sou da Polícia dos Caminhos de Ferro e a situação está sob controle.
— Além de policial deve ser mágico — diz a mulher, a única pessoa além dele em pé. — Como essa espingarda apareceu em suas mãos de uma hora pra outra?
— Espingarda? Este aqui é um fuzil de tiro fixo Guarany, criado e fabricado no Paraguai, arma exclusiva do exército brasileiro. Uma obra-prima da mecânica: o coice de um tiro engatilha o seguinte, basta apertar o gatilho uma única vez pra disparar até acabar os cartuchos — O policial recolhe seus objetos do chão novamente para o bolso do casaco, relógio, carteira; ele para e sente o cheiro dos charutos... — Sou obrigado a fazer meus truques. Já perdi três colegas para esse bando de assaltantes, sei como eles agem. Por isso, quando faço a escolta de um trem, ou quando estou só de carona, como agora, chego antes no vagão-restaurante, sento em uma mesa de fundo e penduro o Guarany do lado de fora da janela, preso pela tira. Isso e não usar nem uniforme, nem identificação policial são as únicas maneiras de manter a cabeça grudada no pescoço. Que o diga nosso amigo paulista ali, que acabou levando uma bala que tinha meu nome escrito.
— Uma arma pendurada por uma corda, nunca pensaria nisso — Ela olha para baixo, o homem cujo sangue está espalhado pela parte de trás de seu vestido tem a cabeça furada e descoberta, sem o chapéu nem o lenço. — É... é um desses estrangeiros, não é mesmo? Um desses imigrantes que substituíram os escravos na construção das ferrovias!
— Isso mesmo, a Malta do Vapor é formada por chineses. Este grupo, pelo sotaque lusitano, deve ter vindo da província de Macau — Ele segue chutando cada integrante do bando, para confirmar que estejam mortos. — Roubaram o nome “malta” dos grupos de negros capoeiristas e, desconfio, que o “vapor” seja pelo derivado do ópio que fumam antes de cada ataque. Isso os deixam imunes a dor: levam tiros, socos e chutes sem piscar. Mesmo sem o efeito de narcóticos, eles são osso duro. Certa vez capturamos um ainda vivo. Participei durante horas da... do interrogatório. O homem se recusou a falar qualquer coisa. Até o fim.
O policial se aproxima da mulher e faz um gesto de retirar o chapéu.
— Já que falei em nomes, permita que me apresente. Sou João Octavio Ribeiro, porém até meus colegas do departamento só me chamam de João Fumaça.
— Vestindo-se como um saco de carvão não é de se admirar o apelido.
— Na verdade, na verdade, me chamam assim porque minha mãe me deu à luz em uma Maria-fumaça, quando ainda vivia em Londres... Posso perguntar seu nome, madame? Terei que incluí-lo em meu relatório de qualquer maneira.
— Senhorita. Sou a senhorita Maria Pinto, futura senhora Gibson. Estou vindo de Manaus para encontrar meu noivo na capital do Império.
— Que sorte a minha — O homem devolve o chapéu à cabeça e abandona o sorriso. —Desconfio que Mr. Gibson pode ser a razão de tudo o que está acontecendo por aqui.
— Que ninguém se mova ou vamos atirar para matar! Somos a Malta do Vapor e não temos medo de nos sujar com o sangue de vocês!
Os quatro homens levantam-se ao mesmo tempo de seus lugares na cabine, provocando pânico entre as pessoas bem vestidas que trocam o lento e monótono mastigar de suas refeições por gritos e choramingos. Um ou outro palavrão é entreouvido. Até aquele momento, desde que embarcou no penúltimo ponto antes da parada final, o quarteto anunciado como sendo o mais perigoso grupo de assaltantes de trens que já houve viajava de forma discreta; um integrante em cada extremidade do carro, nas mesas dos dois lados do corredor. Com disciplina marcial, sacam armas e erguem lenços para servir de máscaras dificultando o reconhecimento de suas identidades. O líder dos bandoleiros dá as ordens, primeiro para o parceiro à sua direita, depois para os outros à sua frente.
— Você, venha comigo, vamos revistar os homens. Os dois aí procurem a bugra. E todo mundo quieto! Fechem a boca agora ou vamos fechar por vocês! Último aviso.
Ele e sua sombra executam os mesmos movimentos de apalpar paletós com uma mão enquanto seguram pistolas com a outra. Não hesitam em dar tapas, socos e bofetões em quem não colabora com a revista forçada. Do outro lado, um dos mascarados segura um cartaz com a foto de uma jovem, com a qual vai comparando ao rosto de cada uma das mulheres a bordo. Eles também são violentos, arrancam chapéus caríssimos e seguram as mais chorosas pelo queixo para garantir uma boa visão da aparência delas.
O líder termina de examinar os bolsos de alguém quando desconfia de um sujeito que ocupa sozinho uma mesa de canto, encostado à janela aberta no fundo do vagão. O homem está com a cabeça baixa, chapéu impedindo que se veja sua cara. A roupa é toda de um cinza muito escuro, cor de fuligem, casacão, camisa, calças e botas, apesar do calor de fim de novembro transformar os arredores do Rio de Janeiro em uma fornalha faiscante.
— Deixa as mãos longe dos talheres e olha pra mim, magricelo — A arma é erguida a dois palmos da cabeça que se levanta devagar, um desafio evidente à paciência do interlocutor.
— Satisfeito? — Por fim ele encara o mascarado, olhando-o com desprezo. O rosto é quadrado e uma barba de três ou quatro dias o deixa com aparência tão cinzenta quanto o figurino que usa. Pela falta de rugas, passaria por uns vinte anos, não fossem fios brancos nos cabelos — mais compridos que o costume da época determina — a lhe darem o último toque cinza-grisalho que faltava ao conjunto.
A resposta vem na forma de uma coronhada no queixo, seguido de um empurrão que esfrega seu rosto contra o vidro da janela veneziana. O atacante sobe no banco duplo e encosta o cano da arma contra as costelas do alvo. O braço livre derruba prato, copo e talheres ao chão e em seguida começa a buscar algo oculto na roupa do desconhecido.
— Você é o tipo de encrenqueiro que estou a procurar, boquirroto! Se eu encontrar alguma coisa suspeita em seus bolsos... vou jogá-lo ainda vivo para fora deste trem.
— Espero que isso não inclua meus charutos — O comentário sai sem fôlego pela pressão do metal nas costas e pela cara ainda espremida contra a grossa vidraça.
De fato, a única coisa além da carteira, um relógio barato e do bilhete de passagem que o agressor encontra nos bolsos dele são dois charutos com nenhum indicativo de qualidade ou de periculosidade. Todos esses pertences são desprezados e o mascarado alivia a pressão, afastando-se um pouco. Ele ainda parece indeciso se deve deixar o homem de cinza vivo. O indicador da mão direita move-se quase imperceptivelmente encostado ao gatilho. Disparar ou não a arma é algo que ocupa seus pensamentos.
— Aqui, encontrei um que carrega um revólver.
Quem fala é o outro responsável pela averiguação da ala masculina. É só isso que faz a decisão ser tomada, a de deixar vivo aquele rapaz acinzentado. Na mesma hora o mascarado-chefe recua dois passos e segue na direção em que está seu comandado.
Um homem, duas mesas atrás, está com braços erguidos, rendido pelo algoz que agora porta duas armas, uma delas exibida de lado para o líder do bando.
— Um colt? Arma americana? Não é o padrão deles, mas quem sabe? Há alguma identificação, um distintivo?
— Não. Só a arma — O integrante da Malta do Vapor fala sem tirar os olhos da presa.
— Eu juro que era só para minha defesa pessoal... Não sou quem vocês procuram, seja lá quem for. Sou o coronel Ferreira, de Araruna...
— Não vamos arriscar. Sempre existe um agente deles nestes carros de luxo. Atire —A ordem do líder é dada sem emoção, nem por isso deixa de ser seguida no mesmo instante.
O tiro dado à queima-roupa abre um pequeno rombo na testa do homem, porém estoura a base do crânio na parte de trás. Sangue e miolos grudam na parede, contrastando com a madeira de qualidade, envernizada a ponto de virar espelho. Gritos e choros voltam a ser ouvidos e são silenciados com novos tiros, agora dados pelo líder em direção ao teto, quase acertando as luminárias a gás. Ele olha de canto para o homem de quem havia suspeitado. Não parece mais tão confiante agora, evita encarar e se limita a baixar o rosto em direção às mãos apoiadas na mesa esvaziada.
O corpo sem vida, com seus três olhos bem abertos e desalinhados, desaba ao chão.
Novamente, um dos assaltantes armados dá um aviso. Agora ele parte dos que estavam caçando entre as mulheres. O que fala segura uma jovem pelos cabelos bem ao lado do fotograma estampado no papel erguido pelo camarada.
— Cá está. Temos a rapariga em mãos.
Os olhos da mulher são nada menos que selvagens. Seu rosto tem feições indígenas, acentuadas pelo cabelo de um preto brilhante e muito liso — levemente despenteado pela ausência não-voluntária do chapéu que agora jaz a seus pés — e pelo bronzeado de um vermelho igual brasa recém-acesa, por sua vez realçado pelo vestido branco que usa. Mas mesmo se não fosse o sangue índio a dar tal impressão, o olhar dela não deixaria dúvidas de se tratar de alguém disposto a matar ou morrer. Ela claramente se esforça para não morder, cuspir ou xingar a dupla que aponta pistolas em sua direção.
— Ótimo, não vamos mais nos demorar. Temos ordens de acabar com a mestiça em caso da menor resistência — É o líder da malta quem fala, prestando, como seus comandados, total atenção ao alvo. — Sigamos para render o maquinista, vamos trancar todos aqui...
— Abaixem-se! Você também, garota, para baixo, já!
O aviso é berrado pelo homem acinzentado que, a despeito da rigorosa revista pela qual passara, segura nas mãos um objeto fosco, cuja ponta rebrilha explosões barulhentas.
Mesmo assustada a mulher obedece tão prontamente que muitos fios de sua cabeleira continuam nas mãos do mascarado que a prendia. Ele e o que segurava o papel com a estampa da mulher são varejados por balas antes de reagir: sem soltar gemido, despencam desarticulados contra a parede do carro. Reação mesmo cabe à outra dupla. O que estava mais próximo do estranho de cinza dispara contra ele, obrigando-o a se jogar para baixo da mesa fixada no chão por grandes parafusos. O líder corre na direção oposta.
Protegendo a vista da chuva de lascas de madeira provocada pelas balas inimigas, o único homem armado e sem máscara a bordo daquele carro volta a fazer mira com seu estranho trabuco. Ele acerta disparos contra a perna esquerda e o ombro direito do bandoleiro à sua frente, mesmo assim, indiferente à dor, o sujeito continua a se arrastar. Sempre atirando. O mascarado só para quando são o peito e a cabeça que se tornam alvo dos disparos.
— Venha aqui, mulher. Vou sair deste trem com você viva ou morreremos ambos agora — O líder da Malta do Vapor gruda a mão no pescoço da garota e a suspende do chão como um escudo. — Está a me ouvir, magricelo? Você vai me deixar sair por aquela porta ou eu e esta mulher levaremos chumbo, sim, mas é da minha arma!
Com meio corpo para fora da proteção do tampo da mesa e com o cano de sua arma soltando lufadas fumegantes feito a locomotiva que puxa o vagão onde todos se encontram, o homem de cinza hesita. O próximo passo, entretanto não é dado por ele.
A garota suspensa com facilidade pelo seu raptor ergue o braço direito para trás às cegas. Todos ouvem o disparo de uma pistola, mesmo os passageiros que se encolheram em seus lugares desde que o breve e furioso tiroteio começou. Ninguém entende nada quando quem desmorona para o lado com a cabeça perfurada é o homem que gritava ameaças.
Só quando a jovem deixa cair uma pistola — que recolhera no chão de outro dos seus pretensos captores — é que se percebe que ela não é tão desprotegida quanto aparentava.
— Eu nunca havia dado um tiro antes na minha vida... — A garota fala devagar olhando para a mão com nojo como se tivesse acabado de segurar um animal peçonhento.
— Espero que a senhorita não tenha que se habituar a isso. No mundo em que vivemos, depois que a gente começa é bem difícil parar de atirar — O homem se levanta, olha em torno para os cinco mortos, limpa o sangue que escorre do lábio inferior, onde levou a coronhada, e tenta acalmar os demais passageiros. — Está tudo bem, agora, sou da Polícia dos Caminhos de Ferro e a situação está sob controle.
— Além de policial deve ser mágico — diz a mulher, a única pessoa além dele em pé. — Como essa espingarda apareceu em suas mãos de uma hora pra outra?
— Espingarda? Este aqui é um fuzil de tiro fixo Guarany, criado e fabricado no Paraguai, arma exclusiva do exército brasileiro. Uma obra-prima da mecânica: o coice de um tiro engatilha o seguinte, basta apertar o gatilho uma única vez pra disparar até acabar os cartuchos — O policial recolhe seus objetos do chão novamente para o bolso do casaco, relógio, carteira; ele para e sente o cheiro dos charutos... — Sou obrigado a fazer meus truques. Já perdi três colegas para esse bando de assaltantes, sei como eles agem. Por isso, quando faço a escolta de um trem, ou quando estou só de carona, como agora, chego antes no vagão-restaurante, sento em uma mesa de fundo e penduro o Guarany do lado de fora da janela, preso pela tira. Isso e não usar nem uniforme, nem identificação policial são as únicas maneiras de manter a cabeça grudada no pescoço. Que o diga nosso amigo paulista ali, que acabou levando uma bala que tinha meu nome escrito.
— Uma arma pendurada por uma corda, nunca pensaria nisso — Ela olha para baixo, o homem cujo sangue está espalhado pela parte de trás de seu vestido tem a cabeça furada e descoberta, sem o chapéu nem o lenço. — É... é um desses estrangeiros, não é mesmo? Um desses imigrantes que substituíram os escravos na construção das ferrovias!
— Isso mesmo, a Malta do Vapor é formada por chineses. Este grupo, pelo sotaque lusitano, deve ter vindo da província de Macau — Ele segue chutando cada integrante do bando, para confirmar que estejam mortos. — Roubaram o nome “malta” dos grupos de negros capoeiristas e, desconfio, que o “vapor” seja pelo derivado do ópio que fumam antes de cada ataque. Isso os deixam imunes a dor: levam tiros, socos e chutes sem piscar. Mesmo sem o efeito de narcóticos, eles são osso duro. Certa vez capturamos um ainda vivo. Participei durante horas da... do interrogatório. O homem se recusou a falar qualquer coisa. Até o fim.
O policial se aproxima da mulher e faz um gesto de retirar o chapéu.
— Já que falei em nomes, permita que me apresente. Sou João Octavio Ribeiro, porém até meus colegas do departamento só me chamam de João Fumaça.
— Vestindo-se como um saco de carvão não é de se admirar o apelido.
— Na verdade, na verdade, me chamam assim porque minha mãe me deu à luz em uma Maria-fumaça, quando ainda vivia em Londres... Posso perguntar seu nome, madame? Terei que incluí-lo em meu relatório de qualquer maneira.
— Senhorita. Sou a senhorita Maria Pinto, futura senhora Gibson. Estou vindo de Manaus para encontrar meu noivo na capital do Império.
— Que sorte a minha — O homem devolve o chapéu à cabeça e abandona o sorriso. —Desconfio que Mr. Gibson pode ser a razão de tudo o que está acontecendo por aqui.
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