6.8.10

Salvador, 1835

Um fato histórico do século XIX é o pano de fundo do novo álbum de André Diniz, um dos principais quadrinistas que surgiram no país nesta última década e que já foi assunto por aqui. O Quilombo Orum Aiê é o nome do álbum, primeiro lançamento na área dos quadrinhos do selo Galera Record, do qual também já falei neste blog, e a Revolta dos Malês é o mencionado fato histórico. Trata-se de uma grande rebelião de escravos de fé islâmica que ocorreu em Salvador a partir do dia 25 de janeiro de 1835. É nas vésperas dessa data que começamos a conhecer o jovem Vinícius, apelidado de Capivara, "bicho que só come mato", pelos seus companheiros de escravidão por se recusar a comer qualquer tipo carne. A vida do rapaz parecia não ter saída dos serviços que presta a mando de seu dono branco em uma barbearia e dos encontros fortuitos com Sinhana, também escrava, mas ela de um negro liberto.



Quando explode a revolta, Capivara tem a chance de tentar realizar seu maior desejo: alcançar um quilombo mítico, descrito por sua mãe inúmeras vezes, para onde teria fugido o pai logo que o rapaz nasceu. É rumo a Orum Aiê que o protagonista ruma, acompanhado de Sinhana, por quem ele arriscou uma volta à cidade para convencê-la a acompanhá-lo; Abdul, escravo muçulmano que não fala nenhuma língua que seus colegas entendam; e Antero, um branco que também se aproveitou da confusão para fugir da cadeia onde cumpria pena por um crime misterioso. A jornada desse quarteto improvável em busca de um lugar utópico é o que acompanhamos ao longo das pouco mais de cem páginas da graphic novel, uma jornada que não ocorre sem contratempos, obviamente. Mas além das ameaças externas e internas do grupo, há espaço para divagações filosóficas entre o letrado Antero e o "orgânico" Capivara, com direito a várias citações de Voltaire (1694-1778) e de Maquiavel (1469-1527).



Responsável pelo texto e pela arte, Diniz se sai muito bem em O Quilombo Orum Aiê. No início, pelas menções idealizadas que o protagonista faz daquele lugar que dá título ao álbum, meu medo era de que o autor caísse nas mesmas armadilhas maniqueístas de Subversivos uma série do início de sua carreira pela editora Nona Arte, sobre o período da última ditatuda militar brasileira, escrita por ele e desenhada por vários convidados diferentes. Felizmente, ao longo dos últimos dez anos o quadrinista carioca amadureceu muito e enriqueceu bastante suas possibilidades narrativas. Mesmo sendo uma história bem direta e linear, o trabalho aqui é bem interessante do início ao fim, evitando as soluções mais simplistas que poderiam compremeter a obra. O único ponto que me incomodou um pouco parece ter sido um ajuste na linguagem para deixar as falas mais contemporâneas e que acabou por padronizar e empobrecer alguns diálogos. O exemplo que mais chama a atenção é o uso da expressão "não ir com a cara" que é dita por três dos personagem ao logo das páginas. Um pouco mais de apuro e pesquisa sobre a forma de se expressar na capital bahiana na primeira metade do século retrasado daria um tempero mais interessante a esse particular, certamente, ainda mais levando-se em conta as diferenças culturais de cada personagem.



Porém, se o texto é bom, são os desenhos que realmente fazem valer e muito a aquisição deste título, tanto por aqueles que se interessam por ambientações no século XIX quanto por qualquer um que apenas aprecie boas histórias em quadrinhos. A arte de André Diniz evoluiu barbaramente neste tempo, desde que vi seu traço pela primeira vez na revista 31 de Fevereiro (que ainda é o meu trabalho favorito dele em termos de roteiro, a mais inovadara de suas criações). Neste trabalho atual, o quadrinista alcançou um nível de estilização excelente, em um traço altamente expressionista. Sua técnica de hachuras, então, merece ainda mais destaque, seja quando detalha as tábuas de um casebre no mato ou para representar a areia de uma praia. Só não gostei muito da repetição que ele empregou para passar o clima tenso dos embates físicos entre Abdul e Antero: sempre que eles partiam para o conflito, o desenhista usou o mesmo recurso de trocar os desenhos quase que geométricos por linhas trêmulas. Um pouco de variedade ali poderia acrescentar mais em termos de impacto visual, um tanto perdido por essa reiteração insistente.



De qualquer forma, esta é uma ótima indicação em termos de quadrinhos nacional. Um belo trabalho de um autor que não se acomodou com o status de revelação do início da carreira, nem com a mais de uma dúzia de prêmios acumulados nesta década de atividade. Ele é alguém que vem evoluindo constantemente em termos artísticos. E o produto final é uma ótima estreia da Galera Record no mercado das graphic novels. Fica a sugestão para os próximos lançamentos, ou mesmo para uma próxima edição deste álbum, que a editora acrescente material extra na publicação, ajudando seu público-alvo, os agora chamados "jovens adultos", a se contextualizar no assunto. Este foi um cuidado que o próprio André Diniz teve em seu tempo de autor independente - como naquele álbum linkado no início desta resenha, Fawcett, feito em parceria com Flavio Colin (1930-2002) - e que poderia ter sido um exemplo a ser seguido em uma empresa com muito mais estrutura para isso.

2 comentários:

bibs disse...

uau!!!
estou encantada com o traço *-*

já está na lista de quadrinhos para ler/comprar =B

Romeu Martins disse...

Bacana, né?

Foi uma evolução e tanto a do cara desde os primeiros trabalhos publicados.