9.11.09

O homem pode voar

Existem vários problemas no mercado brasileiro de ficção científica, vários. Mas entre eles, podemos destacar o atraso com que obras internacionais – leia-se americanas, no mais das vezes – costumam chegar por aqui. Quando chegam. Não raro, a demora pode chegar ao espaço de uma geração ou mais e, quase sempre, acabam impressas por editoras pequenas. Exceções que comprovam a regra são lançamentos de best sellers garantidos ou, pelo menos, de autores de muito prestígio literário, caso, respectivamente, dos livros de Dan Brow e de Michael Chabon que, de novo respectivamente, a Sextante e a Cia. das Letras lançam no Brasil sem muita distância em relação aos originais ianques (vale ressaltar que não é exatamente um consenso que esses dois autores produzam FC, mas eu sou do time que acha que sim). Então, por isso mesmo, não foi sem surpresa que recebi a notícia de que um livro deste gênero tão problemático publicado ano passado por um autor de fora dos EUA já tenha chegado às nossas livrarias e ainda por cima com o selo de uma das grandes editoras do país. E o melhor, para quem se interessa pelo subgênero tratado neste blog, além de FC a obra em questão é um legítimo romance steampunk – apesar de as chamadas editoriais preferirem omitir isso, classificando o livro apenas como ficção histórica.

Estou falando de Aviador do irlandês Eoin Colfer, lançamento do selo Galera Record, tradução de Alves Calado. O autor chega aqui, como é destacado na capa, com o respaldo de uma série muito prestigiada de fantasia: Artemis Fowl, muitas vezes comparada com a protagonizada por Harry Potter. Mas nem vou entrar nessa polêmica, até porque, nas já citadas chamadas editoriais, o romance deixa claro que sua seara é outra: “Nenhuma fada foi necessária para o desenvolvimento deste livro”. E é verdade, na meia dúzia de vezes que são citadas naquelas páginas o objetivo claramente é o de ressaltar que as criaturas míticas não existem. O que move o universo de Aviador é a ciência, é a obstinação de seu personagem principal, Conor Broekhart, em conseguir encontrar meios para voar. Nada de pós mágicos, vassouras encantadas ou mandingas assemelhadas. As tentativas do rapaz se limitam aos artefatos que funcionaram no mundo real: balões, planadores, veículos a motor. Alguns dos pioneiros que construíram tal história foram nominalmente citados na página 58 – mas não adianta procurar por Santos Dumont. O que torna a obra um legítimo exemplar steamer é que o jovem protagonista, nascido - atenção para o detalhe - em um balão, no ano de 1878, consegue seus feitos décadas antes do que tivemos justamente nesta história oficial, garantindo o toque de retrofuturismo que marca o gênero.


E a trama criada por Colfer garante bastante ação para fixar o interesse dos leitores – cujo público alvo é o juvenil, mas há potencial para agradar de verdade também aos mais velhos que gostem de boas histórias de aventuras. Grande parte da charada já foi desvendada por Ana Cristina Rodrigues que resenhou a edição britânica original, Airman, em seu recém-inaugurado blog Observatório a Vapor: o livro presta uma grande homenagem, quase uma releitura, de O conde de Monte Cristo, clássico de Alexandre Dumas, com fortes pitadas da presença do Batman de Bob Kane. Toda a parte da prisão de Conor, que consome cerca de um terço das páginas do romance, remetem diretamente ao autor francês, como observou a resenhista: “Não só o tema da vingança dá o mote da ação do protagonista, como há vários elementos reforçando a sensação, como a prisão, mortes que não são verdadeiras, uma identidade falsa… Registro que isso não é um ponto negativo. Muito pelo contrário. Refrescar temas clássicos da literatura e homenagear livros como esse, que formam o verdadeiro cânone literário mundial, só pode ser bom”. Assino integralmente.

Da mesma forma, num momento posterior, o desenrolar da aventura vai evocando características do herói dos quadrinhos. Com algumas pequenas modificações pontuais, não é difícil reimaginar o conteúdo de Airman à moda de Batman. Substitua Conor Broekhart por Bruce Wayne; o mentor do rapaz, Victor Vigny, pelo Comissário Gordon; a prisão da ilha Pequena Salgada pelo Asilo Arkham; seu colega de cela, Linus Wynter, pelo mordomo Alfred; e o antagonista Hugo Bonvilain poderia ser um Ra´s Al Ghul ou ainda Harvey “Duas Caras” Dent. Pronto! Teríamos a receita para uma ótima revista na linha Elseworld da DC Comics, na qual alguns dos personagens tradicionais da editora americana são retirados de seus cenários costumeiros para viverem aventuras em outros mundos ou outras épocas. O Homem-Morcego já conta com algumas versões do século XIX, eu mesmo resenhei uma delas antes. Da mesma forma como concordo que é interessante homenagear obras que fazem parte do cânone também acredito que é muito bem-vindo esse olhar da literatura para meios tão pop quanto quadrinhos de super-heróis.

O diálogo feito por Eoin Colfer atravessa séculos e promove essa harmonia de nichos culturais de forma bastante agradável. Seu texto é claro e objetivo, sem muitas inovações e estilismos – o detalhe mais interessante, mas nada inédito, é misturar a narração em terceira pessoa com alguns lampejos dos pensamentos dos personagens, destacados em itálico para não provocar confusão. Mas é uma escrita eficiente e segura. Há alguns deslizes, como uma série de coincidências tão fortuitas para a trama – típicas do folhetim mas que poderiam ser retrabalhadas em uma produção contemporânea – e, como apontou Ana Cristina, uma subutilização das representantes femininas – e olhe que a própria rainha Vitória faz uma ponta no livro, que poderia ter rendido muito mais se o autor assim o quisesse. Detalhes pequenos que não tiram o brilho deste lançamento obrigatório para os steampunkers do Brasil.

4 comentários:

Alexandre Lancaster disse...

Pior que eu acho que essas coincidências fortuitas são parte do charme de folhetim da história. Mas funciona como um relógio. Eu recomendo. :)

Romeu Martins disse...

Não deixa mesmo de ter seu charme ;-)

Nikelen Witter disse...

Ótima indicação, Romeu. Confesso que praticamente parei de ler ao ver paralelos com O Conde de Monte Cristo e Batmam. Creio que leria qualquer coisa com esses paralelos. Vou atrás do livros, já.
Bj

Romeu Martins disse...

hehe vale a pena, Nikelen! Esse livro foi uma boa surpresa para mim, uma história bem contada e com um ritmo bem legal. Beijos