14.10.10

Viagens temporais

Vou começar esta resenha do livro O mapa do tempo, do espanhol Félix J. Palma – lançado recentemente no Brasil pela editora Intrínseca – citando outra resenha que escrevi tempos atrás.

Milênios antes de o engenho humano tê-lo tornado possível, nosso velho sonho de voar como os pássaros ganhou a forma de uma lenda, na Grécia antiga. Histórias como a de Ícaro anteciparam e mobilizaram a vontade de um número incontável de pessoas ao longo das eras, servindo ora como fonte de inspiração ora como alerta. De certa maneira, a ficção científica pode ser considerada sucessora dessa linhagem de narrativas mitológicas, com o diferencial de ter substituido a intervenção dos deuses por uma dose – em alguns casos, ligeira pitada – de empreendedorismo humano e de conhecimento aplicado. Um exemplo prático desse moderno cânone mitológico foi o primeiro livro de um dos desbravadores do gênero literário: A máquina do tempo, de H. G. Wells. O escritor inglês fundou um novo mito quando fez seu Ícaro anônimo desafiar não os céus mas aquilo que chamou de quarta dimensão, em uma viagem ao futuro. 



A influência daquele escritor britânico na obra do ibérico é muito maior que apenas a inspiração da mitologia a respeito de viagem no tempo. H. G. Wells (1866-1946) é uma presença constante nas 470 páginas do romance de Félix J. Palma como personagem de fato. Em todas as três partes que compõem o livro. Primeiramente, ele, aos 30 anos, recém-lançado no mundo da literatura, parece ser apenas um coadjuvante na história de um jovem londrino obcecado com um crime que ocorreu oito anos antes, no outono de 1888: o assassinato da mulher que amava pelas mãos de Jack, o estripador. Já no trecho seguinte, Wells divide a trama em importância com outro personagem, numa sequência epistolar que é o grande momento da obra. Mas é no terço final em que um dos pais da ficção científica acaba recebendo a maior homenagem de O mapa do tempo, como fundador mesmo de uma mitologia moderna, à frente de outros escritores citados e também presentes, como o irlandês Bran Stoker (1847-1912).

Infelizmente, esta derradeira parte é também a mais fraca do livro. Se Palma tivesse escrito uma trilogia, recomendaria comprar apenas os dois primeiros capítulos e deixar o terceiro de lado. Mas como em sua estreia como romancista ele criou um tomo único, não acredito que sejam as 130 páginas finais que vão comprometer este que é um excelente lançamento e que foi uma das grandes surpresas literárias do ano para mim. Uma oprtunidade e tanto para se desbravar a FC de um país do qual não costumam circular muitos exemplares em nossas livrarias. Mais ainda para os apreciadores do steampunk, pois, com várias especulações sobre as diversas formas de se ludibriar os mecanismos cronológicos a partir do século XIX, O mapa do tempo é uma ótima aquisição. Porém, não gostaria aqui de tentar dar uma classificação precisa do gênero a que ele pertence, melhor deixar essa tarefa aos leitores.

O que dá para dizer sem medo é que a prosa do espanhol, traduzida para o português por Paulina Wacht e Ari Roitman, faz valer o investimento. O escritor criou um narrador orgulhosa e cinicamente onisciente que é uma atração imperdível de seu romance, mesmo não fazendo parte fisicamente dos acontecimentos que nos conta. Sua capacidade descritiva é de prender a atenção e não largar mais, mesmo quando ele deixa o enredo de lado para se ater ao passado de algum personagem  – na verdade, um dos meus trechos favoritos do livro é justamente uma dessas passagens, ainda na primeira parte, quando o autor descreve um encontro entre Wells e Joseph Merrick (1862-1890), mais conhecido como o Homem Elefante. A capacidade de ir do sarcasmo ao lirismo impressiona. Assim como impressionantes são as formas de paradoxos temporais que Palma apresenta, conseguindo ser criativo em uma tradição criada por aquele seu personagem e inspirador há 115 anos.

8 comentários:

bibs disse...

agora que li a resenha direitinho, volto a dizer: quero ler ó_ò

assim que der vou comprar =]

Romeu Martins disse...

E eu volto a dizer: vale a pena ;-) O Wells do Palma é um ótimo personagem de folhetim, hehe

Anônimo disse...

E minha lista cresce...

Romeu Martins disse...

Vale a pena, viu? Esse pulou minha lista só pelo modo como o cara narra...

Octavio Aragão disse...

Nas 100 pgs finais. Até agora, uma das melhores leituras do ano.

Romeu Martins disse...

Ah, a parte dois é simplesmente magnífica!

PodEspecular disse...

Excelente resenha, Romeu, como sempre:-)

Li esse livro no ano passado mas parece que foi ontem, de tão arrebatadora que é sua trama.

Vale à pena cada centavo pago.

P.S.: Romeu, é impressão minha ou o Félix Palma descreve as cenas do mesmo jeito delicioso que o Max Mallmann? :-)

Abração,
Paulo Elache (host do PodEspecular Podcast)

Romeu Martins disse...

Haha, olha, é uma boa pedida fazer essa comparação entre a obra do espanhol e a do gaúcho, hein? O narrador do Palma também me lembrou a versão que o Lúcio Manfredi fez do clássico de Machado de Assis em ritmo de FC:

http://cidadephantastica.blogspot.com/2010/09/o-dilema-de-bentinho.html