10.5.10

Steampunk feito no Brasil 5

Um de meus contos favoritos na coletânea Steampunk - Histórias de um passado extraordinário é "A flor do estrume", do jornalista Antonio Luiz M. C. Costa, uma visão retrofuturista das ciências médicas em um Brasil que figura entre as potências do XIX. O universo daquela noveleta havia sido delineado por seu autor em uma edição da revista em que trabalha, a CartaCapital, na forma de um artigo na época em que se comemoravam os 500 anos do Descobrimento do Brasil. Aquele texto especulava o que poderia ter acontecido com nosso país caso Dom Sebastião (1554-1578) não houvesse desaparecido na cruzada que promoveu no Marrocos, deixando para trás não apenas o trono de Portugal vago, mas toda uma crise dinástica que levou a perda da independência do reino e ao início de um processo de decadência lusitano. Com o título de "Outros 500" o ensaio jornalístico é a origem tanto de "A flor do estrume" quanto de um novo texto que Costa acaba de publicar em seu livro virtual na rede social aoLimiar: "O Istmo do Doutor Moreira".

Novamente, o escritor deixou de lado o alvo preferencial dos autores steampunk - mecanismos movidos a vapor - para se voltar a avanços na área médica. O texto aqui, que havia sido publicado anteriormente nos documentos do jornalista na rede Scribd, é muito provavelmente a mais instigante especulação do tipo que já li. Ele imagina, naquele cenário de um Brasil muito mais avançado economica e cientificamente, o dilema do médico citado no título da história. Descendente de portugueses, católico, rico e conservador, Afonso Fialho Moreira (1719-1801) tornou-se conhecido no mundo inteiro por ter identificado, na década de 1760, os fatores sanguíneos A, B, AB e O, descobrindo os motivos por trás da incompatibilidade de transplantes e de transfusões entre pacientes. Por ironia, esse conhecimento o ajudaria a entender o quanto ele estava impotente para tratar sua filha mais nova, Maria Isabel de Almeida Moreira, chamada de Bebel pelos familiares, nascida em 1767, e portadora de uma rara e mortal forma de anemia congênita.

A única maneira que o doutor encontrou para poder ajudar sua filha foi a proposta de uma técnica revolucionária e que provocou reações de repúdio em boa parte da sociedade da época. Ele teria que encontrar algum voluntário disposto a se tornar uma espécie de xipófago artificial com Maria Isabel, compartilhando com ela, pernanentemente, o sistema sanguíneo, tornando-se assim um doador constante do fluido que a garota necessitava para sobreviver. Depois de dispensados vários voluntários, fenotipicamente mais semelhantes à paciente mas incopatíveis na genética, a única alternativa que se demonstrou viável foi o tipo mais improvável possível. Um jovem negro, pobre, muçulmano chamado Mamadu Baldé. Escrito na forma de um artigo de divulgação científica para uma publicação especializada - Revista História e Ciência, de julho de 1897, pela pesquisadora Ester Arias Carvalho -, é desta forma que a noveleta descreve o curioso procedimento:


Depois de uma semana de preparação, a operação foi realizada em 15 de dezembro de 1779. Não cabe esmiuçar aqui os pormenores. Basta dizer que os sistemas circulatórios dos dois adolescentes foram conectados por artérias dos antebraços, formando o que o doutor chamou de “istmo arterio-venoso radio-ulnar” e a imprensa de “istmo do doutor Moreira”. A ligação foi assegurada por placas e pinos de platina que prendiam solidamente os ossos do antebraço direito de Mamadu, que era canhoto, ao antebraço esquerdo de Bebel. Devido à fragilidade desta, a usou-se apenas anestesia local (cocaína).

O que se segue nas páginas seguintes dessa noveleta são os avanços secundários que tal operação médica causou na sociedade brasileira de fins do século XVIII. A união forçada dos dois jovens de culturas tão diferentes provocou uma rápida reforma nos sistemas religiosos e sociais do país, com algumas implicações políticas que atingem até mesmo as decisões tomadas pelo Imperador e inspiram correntes adversárias à monarquia. Provavelmente, seria mais fácil de acompanhar todo esse desenrolar paralelo ao cotidiano daquela dupla se o texto fosse acompanhado de material que descrevesse melhor os pontos de divergência e a linha do tempo adotada naquele universo. Para quem não conhece os bastidores de "Outros 500"  e de "A flor do estrume" pode ser bem mais difícil acompanhar algumas referências, por exemplo, aos métodos contraceptivos e sobre a identidade dos mandatários do Império. Mesmo assim, é um texto que vale a leitura, pela abordagem inusitada que faz dos avanços científicos e das consequências inesperadas que ele pode provocar.

Nenhum comentário: