3.8.09

Caleidoscópio retro-futurista

Por Ricardo França


Uma coletânea como há muito não se via em termos de coesão e variedade com qualidade. Obviamente facilitou a consecução destas virtudes o fato de existir um fio condutor na forma do tema-estilo do título, que com todo o charme das histórias em futuro do pretérito mostra várias as possibilidades do que poderia ter sido com um estilo que dificilmente se adota hoje em dia. Todos os autores manifestaram ao jeito de cada um seu caleidoscópio interessante de imagens retro-futuristas. O espanto pessoal quanto ao grau de pesquisa necessária para as escrituras acompanhou cada página lida neste opúsculo, que é também adicionalmente uma mostra que se pode se manter as referências de nossas raízes culturais em quase qualquer estilo ficcional de forma bem feita. Minhas impressões de cada conto vão descritas individualmente como segue:

O Assalto ao Trem Pagador – Gianpaolo Celli

Abrindo a coletânea um conto que é uma verdadeira “traulitada” em termos de construção de cenário. Pesquisa intensiva descendo aos mínimos detalhes de consistência entremeados organicamente num ritmo de aventura e ação fazem deste conto steampunk uma experiência de fruição única para quem também aprecia uma boa pitada de teoria da conspiração. Fica aquele gosto de querer mais histórias com o desdobrar deste pano de fundo sócio-histórico.

Uma Breve Historia da Maquinidade – Fábio Fernandes

Um sintético conto que, mesmo num espaço bem “mignon”, consegue através de uma visão dos “rabota” em largas pinceladas aludir contextualmente aos grandes conflitos sócio-industriais do sec. XIX, ao mesmo tempo em que resgata personagens já bem conhecidos do imaginário coletivo, mas sempre sob um viés originalíssimo, e com o mesmo tom criativo no desembocar do seu final. Um “FF” da melhor qualidade.


A Flor do Estrume – Antônio Luiz M. C. Costa

Esta deliciosa história, recheada de bem urdidas referências de cunho estilístico e literário da nossa cultura para quem já teve oportunidade em algum momento de estabelecer um “primeiro contacto” com esta, é também quase um “must” como potencial ferramenta para alavancar interesses se for usada como atrativo para que nossos jovens se interessem pela produção dos autores nacionais clássicos. E além de apresentar o perfil de uma História Alternativa com nossas cores ainda põe uma criativa abordagem da possibilidade quanto às tecnologias biológicas dentro do estilo steampunk.


A Música das Esferas – Alexandre Lancaster

Os personagens deste conto contém grande eficácia de identificação, sendo tanto convincentes e bem construídas como adequadamente inseridas dentro de uma ação de ritmo jovem e ágil, dada a curta extensão de uma história ainda muito bem situada segundo o tema do livro. Uma também convincente aplicação do conceito operacional de um “mecha a vapor” e um estilo que por vezes perpassa ao “gore”, agregados a um sólido bom humor que coube muito bem no cenário e nos diálogos, faz com que fiquemos expectantes quanto às futuras incursões do autor.


O Plano de Robida: Une Voyage Extraordinaire – Roberto de Sousa Causo

Fantástica exposição de história de aventura num “blend” de tons míticos com tecnológicos, aborda um tema que sempre me foi de interesse, e cuja consecução resultou altamente satisfatória. Condensando o melhor do estilo e tradição dos pulps com um locus histórico mais do que adequado à coletânea, tem aquele tom estimulante que faz falta em muitas histórias mais “reflexivas” da atualidade. Espero ansiosamente a provável continuação deste conto que fecha bem, mas que claramente apresenta um gancho certo para a extensão deste fragoroso embate entre um vilão mais ambicioso que o sherlockiano Moriarty e as forças atlantes, sob a quase impotente e ainda ingênua sociedade da época.

Obs: Foi ótimo ver o Padre Landell de Moura representado de forma tão adequada e respeitosa.


O Dobrão de Prata – Claudio Villa

Esta angustiante história de terror narrada em primeira pessoa não fica nada a dever às dos grandes representantes do gênero. A montagem de um cenário (sub-)aquático entre duas épocas seculares, bem como a sensação de como nem a ingênua confiança advinda dos albores da tecnologia pode ajudar quando confrontada com o incognoscível foram judiciosamente usadas para criar o clima macabro deste conto.

Uma Vida Possível Atrás das Barricadas – Jacques Barcia

A fusão estilística steam-punk-chaotic-weird-science (des-)enquadrada num hipotético cenário de conflagração política semelhante aos gerados pelas grandes confusões ideológicas dos séc. XIX e XX, na forma como obtida pelo autor, conseguiu atingir a dosagem certa dos elementos para a inclusão de uma vida aparentemente impossível mas não obstante invencível. Uma ode à liberdade e tolerância do diferente embutida nestes rasgados e plásticos (ou seriam organo-metálicos?) võos imaginativos.


Cidade Phantástica – Romeu Martins

Esta deliciosa fusão de elementos reais e literários (nacionais e internacionais) absolutamente bem pesquisados e embasados no contexto temático da coletânea teve na sua construção o toque de um estilo de ação policial tipicamente pulp, porém mesclado com sutis e às vezes grandiloquentes toques descricionais que fizeram paradoxalmente acelerar e dar colorido vivo a uma história cuja plausibilidade se estabelece como uma das mais fortemente impactantes desta coletânea.


Por Um Fio – Flávio Medeiros

Um grande otimismo subjacente pela humanidade, mesmo sob as condições mais limítrofes e desesperançosas, perpassa por este claustrofóbico conto que, ao mesmo tempo que resgata o estilo clássico de histórias de confronto entre oponentes valorosos de semelhante brilho, tem um “timing” que prende e nos faz “navegar” sem escalas até o fecho final.


Nota complementar:
Alguns poderiam retrucar que só fui “elogios” no que se refere à resenha dos contos desta surpreendente coletânea. Devo dizer em defesa que uma das principais preocupações foi tentar não levantar informação por demais “spoilerística”, me restringindo mais a uma descrição do clima que expondo os detalhes sobrenadantes que mais me afetaram (mesmo que por vezes falhando neste intento), até pelo fato de não ser propriamente um especialista em teoria literária no geral e no estilo steampunk em particular. Obviamente que alguns contos me agradaram mais que outros e alguns pouquíssimos deslizes na revisão (atípicamente poucos) ou de referência histórica (mas, ora bolas, se trata ou não de HA?), que no meu entender não comprometeram o prazer das leituras, poderiam ser indicados, mas achei por bem que seria mais construtivo apontar as grandes forças desta seleção de contos (que certamente fica como um marco tanto no estilo de produção como na qualidade gráfica) que pode e deve se consolidar como uma referência até mesmo acadêmica dentro do quadro da FC/HA nacional. Minhas esperanças estão em que seja esta a primeira de muitas outras iniciativas semelhantes.

Este texto foi originalmente publicado na comunidade Ficção Científica, do Orkut, que sorteou um exemplar da coletânea, cedido pelo autor Antônio Luiz M. C. Costa

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