24.1.09

Investidor do espaço

Bem poucas pessoas conhecem a biografia de Irineu Evangelista de Souza, pelo menos pelo nome verdadeiro e completo dele. Mas quem nunca ouviu falar do Barão, e mais tarde Visconde, de Mauá? Instalado na capital do Império, esse gaúcho de Arroio Grande se tornou a principal força capitalista e liberal em um país ainda escravocrata e cartorialista.

Mesmo com pouco vento a favor, ele deixou a infância de órfão pobre para trás e foi abrindo caminho primeiro no comércio, em seguida na indústria, na política e no mundo das finanças. Chegou a ser dono de 17 empresas com filiais em seis países o que lhe garantiu respeito no mundo inteiro. Uma prova desse recnhecimento está impressa no livro De la Terre à la Lune, escrito em 1865 por Jules Verne (1828-1905).

Naquela obra, o autor francês imagina um feito sem precedentes que passaria a ocupar a mente e o tempo ocioso dos engenheiros bélicos americanos, reunidos no fictício Gun Club, entediados após o fim da Guerra Civil que dividiu o país. O projeto encabeçado pelo presidente daquele clube era uma ambiciosa odisséia rumo à Lua: um projétil disparado por um gigantesco canhão deveria levar três voluntários a nosso satélite natural.

A certa altura do folhetim, após realizar os cálculos do projeto, medidas tanto do projétil quanto do canhão disparador, material a ser empregado, data para o lançamento, tudo enfim, Verne passa a imaginar uma lista de investidores internacionais com capital suficiente para bancar tal aventura. O resultado pode ser lido a seguir:

A Vienne, chez S.-M. de Rothschild ;
A Pétersbourg, chez Stieglitz et Ce ;
A Paris, au Crédit mobilier ;
A Stockholm, chez Tottie et Arfuredson ;
A Londres, chez N.-M. de Rothschild et fils ;
A Turin, chez Ardouin et Ce ;
A Berlin, chez Mendelssohn ;
A Genève, chez Lombard, Odier et Ce ;
A Constantinople, à la Banque Ottomane ;
A Bruxelles, chez S. Lambert ;
A Madrid, chez Daniel Weisweller ;
A Amsterdam, au Crédit Néerlandais ;
A Rome, chez Torlonia et Ce ;
A Lisbonne, chez Lecesne ;
A Copenhague, à la Banque privée ;
A Buenos Aires, à la Banque Maua ;
A Rio de Janeiro, même maison ;
A Montevideo, même maison ;
A Valparaiso, chez Thomas La Chambre et Ce ;
A Mexico, chez Martin Daran et Ce ;
A Lima, chez Thomas La Chambre et Ce.


Sim, em três capitais da América Latina, uma certa casa de nome Banque Mauá. Por trás delas, estava o brasileiro, que na vida real se associou a financistas ingleses e abriu filiais ainda na Europa, como Londres e Paris, e nos Estados Unidos, onde operava com o nome Banco Mauá, Mac Gregor & Cia.

Nesta mesma vida real, Mauá trouxe o progresso a vapor a nosso país. O título de Barão veio em 30 de abril de 1854 e não trazia em seu brasão a imagem de uma locomotiva por mera questão de gosto. Foi naquele mesmo mês e ano que o gaúcho inaugurou a primeira ferrovia brasileira, 14 km de trilhos unindo o Porto da Estrela, na baía de Guanabara, à estação de Fragoso, na raiz da Serra da Estrela. Foi ainda em 1854 que ele também fundou o estabelecimento responsável pela iluminação a gás no Rio de Janeiro, o que serviu para aposentar os antigos lampiões alimentados com óleo de baleia e dar um ar moderno à capital de um Império. Muitos dos investimentos que ele captou vinham da economia que representou aos cofres públicos a proibição do tráfico internacional de escravos, em 1850.

Porém a lista de proezas não para por aí, ele criou a primeira indústria moderna do país, com a fábrica na Ponta da Areia, em Niterói, onde, no primeiro ano de funcionamento, mil operários produziam tubos para encanamento de água, guindastes, prensas, engenhos de açúcar e, principalmente, navios. Investiu ainda na navegação a vapor no Amazonas, em uma época em que se começava a insinuar a necessidade de internacionalização daquela selva. Continuou a financiar novas estradas de ferro, além daquela pioneira, como a D. Pedro II, atual Central do Brasil; a Recife-São Francisco, em Pernambuco; Bahia-São Francisco, na Bahia; a ferrovia de Santos a Jundiaí, em São Paulo.

Tudo isso e muito mais, em um país que não era de todo simpático a suas ideias republicanas, abolicionistas e progressistas. Os interesses contrariados de setores escravistas, sabotagens de concorrentes estrangeiros e a crise econômica provocada pela dispendiosa Guerra do Paraguai foram as principais causas da decadência do empresário, que acabou por pedir moratória em 1873. Mas o que aconteceria se a realidade fosse outra? Se os projetos do Barão de Mauá fossem ainda mais incentivados pelo imperador? Se ele conseguisse influenciar o governo para ir além em suas medidas pelo fim da escravidão e por negociações mais pragmáticas com os países vizinhos, transformando potenciais inimigos em parceiros comerciais? E ainda, e se as ligações imaginadas por Verne entre Mauá e os engenheiros do Gun Club fossem realidade? Que tipo de mundo seria esse?

9 comentários:

Anônimo disse...

Eu não sabia dessa "indicação" do Banco Mauá no livro do Verne.
Então, o gancho pra história estava lá e ninguém tinha visto.

Romeu Martins disse...

Pois é, anônimo.

O problema é que várias traduções dos livros do Jules Verne fazem verdadeiros resumos da história, cortando trechos inteiros das obras.

Eu conferi duas edições nacionais do livro, uma mais picotada que a outra. Em ambas, a citação ao brasileiro havia sido tungada...

Sorte que encontrei uma tradução para o espanhol e depois fui conferir o original, em francês, para tirar qualquer dúvida.

Anônimo disse...

Suspeitei mesmo que tinha um bom trabalho de pesquisa por trás da história.

Ludi

Romeu Martins disse...

Oi, Ludi ;-)

Pesquisar é um barato, muito além de uma necessidade.

Giseli Ramos disse...

Eu ouvi falar que tem uma ótima biografia do barão de Mauá, que mostra muitos detalhes e o escambau... mas infelizmente não sei qual biografia é, porque existem várias hehe

Romeu Martins disse...

Oi, Gi

A melhor, sem dúvida, é esta aqui:

http://comprar.todaoferta.uol.com.br/maua-empresario-do-imperio-biografia-jorge-caldeira-CHE1NSWHII?opentab=3

Camila Fernandes disse...

Romeu,
Suas pesquisas são no mínimo emocionantes. Por simples falta de pesquisa da minha parte eu não sabia nem de metade dessas coisas. Estou lendo aqui, em voz alta, com o David, a fim de compartilhar desse entusiasmo. Muito legal. Com esse nível de embasamento histórico (e essa habilidade de desencavar fatos interessantes rs), seu livro tem tudo para ser excelente.

Anônimo disse...

Hehe, não exagere... Até porque não é livro. É só um texto candidato a parte de uma coletânea, hehe

Beijão

(Romeu, on the road)

Leonardo Peixoto disse...

Essa surpreendente participação do Visconde de Mauá na obra de Jules Verne seria um ótimo gancho para uma nova aventura de João Fumaça , não acha ?