Já comentei neste blog várias vezes – mas nunca o suficiente – sobre Jules Verne (1828-1905), um dos autores que mais influenciaram a noveleta homônima “Cidade Phantástica”. Mas o ano ia acabar sem que eu falasse sobre outro escritor fundamental: sir Arthur Conan Doyle (1859-1930). O britânico se aventurou com sucesso em vários estilos de textos, entre eles a ficção científica criada por aquele francês já citado. Contudo, muito mais do que pela poesia, novelas históricas e obras de não-ficção que tenha escrito, ele se tornou conhecido em todo o mundo por uma criação que superou todas as outras e se tornou um dos personagens mais famosos da literatura, Sherlock Holmes. Ao todo foram 60 histórias protagonizadas pelo morador mais famoso de Baker Street que saíram da pena de Conan Doyle, entre elas, aquela da qual tomei emprestados dois dos coadjuvantes. Uma das medidas da popularidade do criador e da criatura é a quantidade e a qualidade das histórias que continuam a saga do detetive mesmo tanto tempo após a morte do escritor. Uma dessas obras acaba de ser lançada no Brasil com o selo da maior editora nacional, a Companhia das Letras, me dando oportunidade para reparar minha falta neste final de 2009.
A solução final é o nome do livro e quem o assina é Michael Chabon, escritor americano dono de uma das melhores e mais premiadas prosas da atualidade, traduzida para o português por Alexandre Barbosa de Souza. Com suas 112 páginas, não podemos chamá-lo de romance, está mais para uma novela. Foi publicada originalmente na Paris Review, em 2003 – sendo premiada como o melhor texto a sair naquela revista na ocasião – e depois organizada no formato de livro pela primeira vez no ano seguinte. Sherlock Holmes está presente nesta obra mesmo que o autor tenha decidido não chamá-lo pelo nome em momento algum, preferindo se referir a ele quase sempre como “o velho”. Os motivos para Chabon não se valer de uma grife tão mundialmente conhecida de modo explícito não são claros, mas a razão para o epíteto dado ao personagem é bem evidente. O protagonista que ele pede emprestado a Conan Doyle é visto nesta novela aos 89 anos, alquebrado, vivendo em uma localidade rural da Inglaterra, cultivando abelhas, enquanto o país e o mundo vivem os anos finais da II Guerra Mundial.
O detetive aposentado surge neste livro como símbolo de um tempo que já morreu, de uma era mais romântica e elegante, daquele período que costuma ser revisitado por obras steampunk. A versão de Chabon para o maior investigador da ficção me fez lembrar os versos de um poeta inglês, W. H. Auden (1907-1973), mais precisamente um trecho de “As I walked out one evening”: “And the crack in the tea-cup opens/ A lane to the land of the dead”. Na tradução de Cassiano Viana: “E a fenda no copo de chá escancara a travessa para a terra dos mortos”. Que copo de chá? A própria Inglaterra, ou ainda, o Império Britânico, que rachado, ou fendido, abriu passagem para os horrores do século XX, entre eles as suas duas guerras mundiais. Cada vez que Sherlock surge nesta novela com suas juntas estalantes, músculos doloridos e raciocínio mais lento, quase próximo do nosso normal, eu via nele a xícara de chá no caminho que leva à terra dos mortos.
Isso nem de longe quer dizer que Michael Chabon criou uma sátira como, entre tantos e tantos outros, o brasileiro Jô Soares em seu romance de estreia, O xangô de Baker Street, lançado pela mesma editora em 1995. O escritor americano fez em A solução final uma bela e emotiva homenagem àquele personagem, com sua prosa marcada pelos longos e detalhados apostos, dando uma dimensão humana palpável e ainda preservando a dignidade do grande detetive mesmo em seus últimos anos de uma vida solitária, longe das antigas glórias londrinas. O caso que o desperta da inatividade como investigador, depois de uma pausa de três décadas, é prosaico para quem já vivera tantas aventuras. Holmes é convocado pelo neto de um antigo colaborador a resolver um assassinato naquele vilarejo. Mas sua atenção é despertada mesmo pelo desaparecimento do papagaio de um garoto de nove anos e aparentemente mudo, pois se comunica apenas por rabiscos desconexos no papel. Já a ave é falante e entre os números e canções que profere, em alemão, talvez haja um mistério a mais. O nome do garoto é Linus Steinman; o do papagaio, Bruno, mas podem chamá-lo de McGuffin.
Ainda nesta seara dos nomes, vale lembrar o ótimo achado que é o título do livro. A solução final serve como citação dupla, dialogando tanto com uma das mais famosas histórias de Conan Doyle – “O problema final”, na qual o detetive enfrenta pela primeira vez seu nêmesis e acaba sendo dado como morto – quanto com o programa de extermínio de judeus desenvolvido pelos nazistas. A questão judaica, como de hábito, aparece como um dos temas desta novela, já que o pequeno Linus é um judeu alemão refugiado, adotado por uma família inglesa. O assunto é recorrente na obra de Michael Chabon, apareceu em seus romances mais consagrados, o vencedor do Pulitzer As incríveis aventuras de Kavalier & Clay (judeus na indústria do entretenimento americana da época da recessão) e o ganhador do Hugo, principal honraria da FC mundial, Associação Judaica de Polícia (história alternativa em que Israel foi destruído e o grosso da população sobrevivente ocupa provisoriamente o território do Alasca).
Enfim, ao final da breve leitura deste livro alguns mistérios ainda persistem. Chabon não seguiu a cartilha dos autores de histórias de detetives que costumam entregar tudo pronto e esclarecido ao leitor até a última página. O maior dos mistérios que pode ser comentado aqui, sem comprometer o prazer dos leitores em desvendar, a trama é o porquê de manter o protagonista oculto pela alcunha de “o velho”. Curiosamente, é a segunda vez que isso ocorre com Sherlock Holmes nos últimos meses, nestes lançamentos no Brasil de autores que continuam a saga criada por Conan Doyle. Em 2008, foi a vez do inglês Neil Gaiman, em outra novela, publicada no livro Coisas frágeis, pela editora Conrad. Porém, as razões de “Um estudo em esmeralda”, que promovia a fusão do universo do detetive com o mundo criado pelo americano H. P. Lovecraft (1890-1947), em não citar nomes eram mais claras, ainda que o texto tenha sido preparado com tamanha sutileza que enganou os editores brasileiros nas chamadas que fizeram no livro, como podem perceber os leitores mais atentos daquela obra. Por ora, fico na expectativa do próximo escritor a se aventurar com o personagem, citando-o com todas as letras ou não.
5 comentários:
Atiçou minha curiosidade. Chabon está na minha lista faz tempo.
Não é uma novela tão boa quanto a do Neil Gaiman, aquela sim imperdível, mas o livrinho vale a pena.
Bela resenha, Romeu. Acabo de ler o livro hoje, e concordo em 100% com suas apreciações. Vale a pena ser conhecido, especialmente para escritores, para observarem bem as descrições feitas pelo Chabon. ABRAÇO!
Verdade, Flávio. A técnica do Chabon é algo a ser apreciado por todos, o homem é fenomenal.
A presença dele na coletânea Steampunk organizada pelos VanderMeeer é que me dá alguma esperança de um dia ver a obra lançada por aqui. Abraço!
Espero que futuramente Michael Chabon volte a se aventurar na ficção alternativa .
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